quarta-feira, 15 de abril de 2015

15º Na fazenda Santa Marta

21/04/2014
O ZEQUINHA e a FAZENDA SANTA MARTA

Lá pros cafundós onde Judas perdeu as meias (as botas, perdeu uma légua antes) na estrada que vai na direção de Cristais, viajantes do Guapé passam em frente a Fazenda Santa Marta. Fica ali na Volta Grande. Segundo a lenda, um lugar encantado... Nas costas da fazenda tem a grande serra. Dizem que a “mãe do ouro” desce ali de vez em quando... Juro que vi este sinal nos céus, numa noite estrelada! Garanto que não tinha bebido nada, nem mesmo leite. Eu estava "são". Seguindo adiante, a estrada tem bifurcação: em frente se vai para Balsa do Porto Fernandes. Mas virando à direita, logo se alcança o Patrimônio São José – onde morava João Alexandre, velho benzedor e encantador de cobras, que fazia reza pros animais peçonhentos fugirem do pasto... geralmente os bichos saíam de um pasto e iam pro pasto do vizinho, o que garantia ao João Alexandre nova contratação dos serviços !! Era a única pessoa de pele branca naquela comunidade essencialmente negra.
E seguindo a estrada adiante em caminho tortuoso, atinge-se os limites de Guapé e é possível chegar até Boa Esperança por ali.

Conheci a Fazenda Santa Marta em 1985, quando meu pai levou turmas do Guapé pra fazer plantio de café. Fazenda distante da cidade, bem pra frente da Comunidade Monteiros (onde tem o famoso Bar do Vandelo) e ainda pra frente do Bar do Tulinho, que fica logo depois da Ponte da Noiva – onde a história conta de uma virgem que se jogou dali por causa de decepções amorosas - Essas terras da fazenda, que por muito tempo pararam no tempo e na tecnologia, conheceram uma revolução quando o Sr.Pedro Orlandi – de Jaboticabal, SP – comprou-a da família Fernandes e plantou café em cada palmo de terra aproveitável. Os trabalhadores vizinhos que moravam nas terras do “Capitinga” e Félix João, vieram em peso trabalhar ali. Muitas famílias tiraram pão-de-cada-dia naquelas terras generosas. Por lá fiz muitos amigos.
E alguns anos depois – precisamente em 1988 – voltamos para lá. Não como diaristas que plantavam café – mas voltamos definitivamente, “de mala e cuia” pois meu pai foi chamado para ajudar cuidar do cafezal que tinha crescido e já produzia. Entre muitos serviços que experimentei ali – entre eles, aprendi lidar com três tipos de Máquinas que Lavavam, Secavam e Limpavam Café, além da Máquina de Limpar Arroz e da Máquina de Solda Elétrica, na Oficina. Porém o mais divertido foi serviço de Tratorista... A Fazenda possuía um Ford 6610, dois Massey Ferguson 50-X e dois Agrale 6100. O “Fordão azul” – como o chamávamos – precisava de autorização especial para pilotar. Senhor absoluto dele era o Miltão, o mais antigo tratorista da Fazenda. E eu... bom, eu fui tratorista de um pequenino Agrale 6100!! Esse trator que se parece com brinquedo tem um metro e vinte de altura e não possui partida elétrica. Pra ligar, roda-se uma manivela no para-choques e quando está embalado, o trator sacode, cospe fumaça e dispara o motor. O ronco ultrapassa de longe os 90 decibel e dá-se a impressão que tudo vai desmontar ali no chão. E parece barulho de picadeira, serra elétrica ou metralhadora da 2ª Guerra Mundial. O Zequinha foi meu braço direito nessa peleja, me ajudando aqui e ali nas horas de ligar o possante e nas horas de virar saco de adubo dentro do enorme compartimento que eu engatava no trator. Esse compartimento parecia uma mochila na cacunda do tratorzinho e às vezes o peso era tão grande que o coitadinho empinava e soltando fumaça preta, seguia pelo carreador apenas com as rodas de trás tocando no solo.
Sem governo na direção, precisava controlar o trator nos dois freios independentes, que hora viravam-no pra direita, hora pra esquerda...
Um detalhe: o trator pode ficar mais “largo” ou mais “estreito”, basta que virem suas rodas traseiras de modo que as calotas – que se parecem com grandes bacias – ficam hora viradas pra fora, hora viradas pra dentro. Sem atinar para esse pequeno, porém importante detalhe, uma vez cismei de entrar nas ruas de café cuja inclinação lateral era grande, só porque outro trator, igualzinho aquele que eu pilotava também tinha passado por lá! O primeiro tratorista passou “gradeando” a rua de café, revirando a terra para descobrir a raiz do mato e assim facilitar a limpeza do cafezal. Eu quis passar pela mesma rua, porém meu trator estava com as rodas “estreitas”... Além disso, carregava uma bomba de pulverizar com 200 litros de remédio! Foi uma loucura. O tratorzinho fungou, chiou e virou de rodas pra cima. Era pequenino, de forma que eu apenas passei a perna por cima da direção e escorreguei morro abaixo, com perigo do trator fazer o mesmo, passando por cima de mim!

Ah! Esqueci-me de apresentar o Zequinha!!
Zequinha é filho do Zé Graciano, morou ao lado do Porto Araúna quando seu pai era vivo. Esse moço sofreu poliomielite quando criança, perdendo os movimentos de um pé. Apesar da dificuldade, meu amigo Zequinha era pessoa muito alegre e também muito ágil. Ninguém se atirava - fugindo por baixo do cercado de madeira do curral com tanta presteza como fazia o Zequinha, se um boi ficasse bravo...
O patrão nomeou-o “Comprador de animais” pra Fazenda. Entendia do assunto como ninguém sobre cavalos, burros e vacas. Na Fazenda, lidou com carneiros também. O primeiro cavalo que comprou, morreu 15 dias depois... E a vaca tinha defeito nas tetas e nunca deu leite... Mas Zequinha era querido por todo mundo, muitíssimo engraçado e divertido, além de versátil no serviço. Se precisasse pegar galinhas pro almoço, ou se os porcos furavam o mangue, era só chamar o Zequinha! Se o açude estourasse ou precisava matar um carneiro pro patrão, chamavam o Zequinha! E se um gambá invadia o galinheiro e roubava galinhas à noite? Aí não adiantava chamar Zequinha porque ele dormia em serviço e depois dizia que eram dois gambás: Correu atrás de um enquanto o outro lhe roubava as galinhas...
Certa vez comprou um burro pra trabalhar com “bico-de-pato” plantando feijão no meio das ruas de café. Dizia pra nós que sabia a idade do animal pelos dentes... Esse burro deve ter morrido com mais de 100 anos, porque naquele tempo Zequinha já falava que o animal tinha quase 70 anos!
Zequinha me ajudava misturar adubo e água na caçamba a tiracolo que levávamos no tratorzinho... empoleirava no trator e íamos nós dois pulverizar cafezal, contando causos um pro outro conforme era possível, pois o barulho do trator era extraordinário! Nunca o vi tão ligeiro como no dia em que se jogou e passou voando por baixo dos pés de café na hora que o trator esbarrou numa caixa de maribondos...

Um dia Zequinha chegou da cidade todo faceiro! Tinha comprado dentadura nova... Mas Zequinha gostava de beber umas Tapiocas e Caninha 51 nos fins de semana... pouca coisa, nada que lhe atrapalhasse o equilíbrio, mas suficiente para torna-lo vítima de situações engraçadas; e num desses fim de semana Zequinha cismou com a dentadura, tirou e guardou-a no bolso detrás da calça. De repente aparece Zequinha lá na Sede da Fazenda, com a dentadura nas mãos, feita em 4 pedaços... Tinha esquecido no bolso da calça e sentou em cima! Além de levar uma mordida no traseiro com seus próprios dentes, ficou sem dentaduras depois! A solução foi remendar o objeto com Super-Bonder... Não ficou serviço de profissional, nada odontológico, mas Zequinha usou a dentadura que eu remendei por vários anos depois!

O Zequinha contava uns causos dizendo que era pessoa bem corajosa e enfrentava qualquer perigo, mesmo que fosse de noite, na quaresma e com lua cheia... Então certo dia pregamos uma peça no Zequinha. Foi assim: Enchemos a perna de uma meia-fina com palha de feijão e amarramos linha de pescar pra puxar. Ficou parecendo uma cobra preta e comprida, igual uma sucuri. Ficamos à espreita por detrás de uma árvore na entrada da Fazenda, só esperando Zequinha passar. Tinha anoitecido e o caminho ficou escuro, quando de repente Zequinha apareceu fumando cigarro de palha. Ao longe, só dava pra ver a brasa do cigarro subindo e descendo... subindo e descendo, conforme Zequinha caminhava e se aproximava de nós. Então na hora certa puxamos a linha bem devagar e a “cobra de meia” veio se arrastando, serpenteando, cruzando a estrada na frente dele...
E do Zequinha eu não sei, estava escuro e não o vi, mas a brasa de cigarro voou uns dois metros pra cima e ouvimos um grito assim: “VALHA-ME NOSSA SENHORA! CRENDEUSPADRE, Ô BICHO FERÓIZ! VAI PRA LONGE, TREM DOS INFERNO!”
Zequinha realmente foi corajoso! Sumiu na escuridão noturna até dia seguinte e de manhã cedinho quando saímos pra tomar café, lá estava ele na claridade do dia com uma vara de três metros na mão, cutucando as moitas de capim, resmungando: “Aparece, seu fio de uma égua... Aparece se ocê for hóme, fiote de coisa ruim...” E assim passou dia todo procurando a cobra, que ele chamou de "cobra-mandada" (*)  e até hoje não sabe que o bicho era uma cobra de meia-fina recheada com palha...

Zequinha é vivo e mora ao lado do bar do Zanone, na Cidade Nova. Está lá pra provar a veracidade do texto. Quem quiser, pode procurá-lo. Com certeza se lembrará de mais causos além desses e poderá lhes contar. A quem puder entrevista-lo, por favor leva meu grande abraço com  muita saudades e diz a ele que carrego boas lembranças do tempo que trabalhamos juntos na Fazenda Santa Marta.

(*) Cobra-mandada: Significa cobra de macumba, bicho que aparece por feitiçaria.

4 comentários:

  1. Ansioso para chegar o final de semana e mergulhar nessas histórias de nossa terrá- Guapé - Abçs

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  2. Marcelo, sou neta do Pedro Orlanda. Que felicidade em ler histórias da Fazenda Santa Marta. Esta é provavelmente a fazenda que ele mais gostava! Com certeza esta fazenda não é mais a mesma sem ele.

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  3. Olá Thays, prazer em conhecê-la.
    Estou muito contente que tenha encontrado meu texto na miríade de arquivos espalhados pela Internet!
    Sr.Pedro Orlanda, teu avô, foi o melhor patrão que eu já tive na vida.
    A primeira assinatura na minha Carteira de Trabalho, foi do seu avô. Eu estava com dezenove anos, na época.
    Com muita paciência ele mesmo ensinou-me a fazer solda elétrica, lá na Oficina da Fazenda.
    Também me ensinou a desmontar um trator e montá-lo outra vez, quando precisou regular as válvulas do cabeçote, trocar discos de embreagem ou consertar um diferencial.
    Me ensinou a trabalhar na Máquina de Beneficiar Café, me ensinou medir a umidade do grão de café para armazená-lo na Tulha corretamente... E muito mais!
    Resumindo: O Sr.Pedro Orlanda me deu várias oportunidades para desenvolver alguma profissão.
    Quando vinha à Fazenda, éramos próximos, pois gostava muito de conversar comigo e gostava de observar meu trabalho na lavoura.
    Acredito que ele apostava no meu desenvolvimento, e certa vez me ofereceu oportunidades de trabalhar num projeto dele, de irrigação mecanizada no Nordeste: Eu poderia viajar para ajudar na instalação dos aparelhos!
    O Sr.Pedro Orlanda foi um homem inteligente e sem preconceitos, pois sentava-se à mesa com seus empregados no almoço ou no jantar.
    Guardo muitas lembranças boas do meu primeiro patrão, e sinto imensa saudade dele.
    Desde que saí da Fazenda, nunca mais tive outro patrão igual o Sr.Pedro Orlanda.
    Por motivos pessoais (que não estão ligados nem ao Sr.Pedro, nem à minha família e nem aos colegas de trabalho) eu tive a infelicidade de tomar uma decisão: "Sair da Fazenda e voltar pra cidade".
    Dnª Jaíra, sua avó, ainda vive?
    Por favor transmita meus cumprimentos à toda sua família.
    Houve um empregado de confiança, que acompanhava sempre o Sr.Pedro Orlanda nas viagens de Jaboticabal à Fazenda: Seu nome era Antônio, e Sr.Pedro chamava-o por apelido, que era: "Paisagem".
    Se este homem ainda vive, ou se por acaso você tem algum contato com a família, transmita-lhe também meus cumprimentos.
    E obrigado por ler meus textos!
    Abraço.

    PS:
    Ainda tenho outro blog, que se refere a um livro que escrevi e publiquei.
    Convido-a a visitar a página.
    Sua leitura está disponível gratuitamente nesse endereço:
    www.livromanuara.blogspot.com.br

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