quarta-feira, 15 de abril de 2015

13º A colheita do Café

03/01/2014
PANHA NOSSA DE CADA DIA...

"O CAFEZAL":
Quando chegamos em Guapé – 15 de Novembro de 1974 – apesar do lento progresso, inexistência do asfalto e quase isolamento por causa das águas de Furnas, a cidade vivia relativa estabilidade. Sítios e fazendas possuíam gado leiteiro e plantavam seu cafezinho. Um alqueire produzia suficiente pra sustentar todos de uma família. Na cidade, boa parte da população sobrevivia das atividades braçais se deslocando pra zona rural. Tínhamos as Pedreiras, sendo o Carlinhos do São um dos pioneiros na área. O Canavial chegou num período tardio, com o Zé Jipe, Hermínio, Renã e Melinha da família Maia trazendo a Usina pro Guapé. E a Cacisa comprava a produção de leite. Mas o forte mesmo eram os cafezais.

"ÉPOCA DE COLHEITA":
De todo serviço no cafezal, a COLHEITA era o mais gratificante. O pagamento era feito por Medida de café colhido. E no balaio cabia 60 litros. A 'Panha do Café' gerava intenso movimento e a cidade despertava de sua letargia. Pra muitos, 'a Panha' foi o primeiro serviço remunerado. Crianças e jovens consumiram suas férias de Julho com os pais, nas Panhas de Café. Os comerciantes abasteciam o estoque – inclusive de penicos, como lembra Soninha em um de seus textos – e até aqueles produtos caros, importados e encalhados – o Bacalhau da Noruega por exemplo, que ninguém deu conta de comprar na Semana Santa – finalmente sairiam das prateleiras, pois a população se enchia de dinheiro.

"A CADERNETA":
Era um 'livreto por excelência', esse caderninho de cinco colunas – Data, Quantidade, Produto, Valor unitário, Valor Total – foi quase tão importante quanto a Bíblia pra muita gente. Se o comerciante falava em Cortar a Caderneta... Ai, ai, era o mesmo que cortar o craque da Seleção na final de Campeonato... Tragédia sem precedentes! Ali estavam depositadas a esperança da família e a confiança do vendedor, que fazia as vendas “fiadas”. A Caderneta na ÉPOCA das PANHAS saía do Vermelho e muita gente pagava suas contas atrasadas. Além de pagar suas contas velhas, a família comprava quase à vista, pois recebia por quinzena. Assim, o pai de família recuperava sua autoestima e varria pra debaixo do tapete a alcunha de “nó-cego” e reafirmava um compromisso de confiança com o comerciante, que reabria crédito – e claro, nova Caderneta até a próxima “Panha”.
A Caderneta foi tão importante em nossas vidas que gerou termo próprio: Dizer RASGAR A CADERNETA – era o mesmo que confiar de olhos fechados em alguém...

"A ORGANIZAÇÃO":
Instituía-se uma hierarquia. No topo – e disputando posição com motorista do caminhão, vinha o 'Turmeiro' – Este era O CARA: “aquele que te chama pra apanhar café nas terras de fulano... Te acorda de manhã, vai na tua casa uma vez por ano... te chama de amigo, te chama de irmão... fala do motorista, te mostra um caminhão... aponta uma estrada, te ensina o roteiro... pra te agradar, fala o preço de um balaio cheio”... (não, não é o Roberto Carlos cantando, é só um Turmeiro).
Em segundo lugar vinham certos Pais de Família: Dono de uma renca de filhos e tio de outros tantos, era quase um Patriarca, pessoa muito respeitada. Com ele vinham a sogra, mulher, filhos, netos, noras, genros, sobrinhos e mais uns por fora que nasciam meio despercebidos... Rendiam ao turmeiro quase vinte pessoas cada um! E uma desavença entre ele e o Turmeiro podia esvaziar o caminhão.
E na base da pirâmide – embora não menos importantes – vinham os apanhadores comuns.

"OS PONTOS":
Geralmente nos bares de esquina. Entre eles: Tião Bernardo, na Av.Brasil com Rua 3 de Fevereiro; Bar do Herinho, perto do Cemitério; Joaquim Barba na Cidade Nova; Nenê do Flauzino perto do Posto do Tié-tié; Geraldo Vilela, que se mudou pra saída da cidade; e muitos, muitos mais.
Antes do Sol nascer, embornal com marmita a tira-colo, a garrafa do café e outra de água (às vezes Purunga no lugar da garrafa d'agua) os apanhadores de café começavam surgir um a um. O Ponto funcionava como uma espécie de Reunião Social. Foi um tempo cheio de histórias, algumas comoventes: Houve uma moça que foi 'panhar' café pra fazer enxoval, ela ia se casar e a data já estava bem próxima. E teve uma senhora que não podia ir, mas foi assim mesmo porque também precisava fazer enxoval – mas era o enxoval do seu filho, pois estava grávida e a criança logo ia nascer... Porém a criança nunca nasceu porque todo esse esforço lhe provocou um aborto. E a moça também nunca se casou porque nas panhas conheceu outro rapaz, abandonou o casamento marcado e com ele fugiu... E assim cada família tinha sua história e o cotidiano de cada um era debulhado ali no meio da turma, o que tornava todos uma espécie de família – uma grande família!

"O TRANSPORTE":
Era em caminhão-toco – aquele de carroceria curta – que nessa época não fazia fretes pequenos nem transportava adubo, mas era guarnecido com toldo de lona e bancos de madeira, onde os bóias-frias se acomodavam. Na verdade eram tábuas fixadas na guarnição da carroceria e um toco pregado no meio, pra não se quebrar no caminho. Medidas de segurança não existiam... Apesar dos tristes acontecimentos – como aquele de Sto. Antônio que atingiu catorze famílias na década de 80 – Apesar disso houve poucos acidentes fatais se levarmos em conta o intenso movimento das colheitas que aconteceram na região por muitos anos nessas condições tão precárias. Ainda cansados do dia anterior, o povo embarcava na carroceria e se distraía com todo tipo de conversa durante a viagem. Toda espécie de assuntos: do religioso ao profano – principalmente esses últimos – que deixariam Padre João de cabelo em pé se ouvisse.
Havia muita história recheada com piadas e brincadeiras, que ninguém levava a sério pois sabia que 80% era invenção. Embora raro por essas bandas, o Animal Veado era o mais citado entre a peãozada, que não perdia nenhuma oportunidade de se expressar! Apesar do 'baixo nível' de comunicação, esse povo Bão de Prosa distraía a todos, subtraindo muitas risadas, fazendo esquecer os solavancos do caminhão, a umidade do orvalho e o frio cortante no rosto, nessa vida atribulada de bóia-fria.

"AS IDEIAS":
Lembro do sonho de João 'Mansur' – era um senhor que morou uns tempos de caseiro na Volta Grande, lá nas terras do Jafé, daí o seu nome, que pegou emprestado do patrão – João contou que saiu num barco a pescar, e o barco ia ligeiro. Deu vontade de urinar (ele falou MIJAR, mas não vou usar palavras de baixo calão num texto tão decente, pra não ficar muito "descente"...) então se dirigiu à proa do barco pra fazer o serviço. Tranquilo, ele admirava a belezura da água cristalina recebendo sua contribuição líquida e amarela, fruto de uma cervejada... admirava os passarinhos no galho da árvore a comer goiabas e o Tiziu que cantava e dava um pulinho... tão detalhista num sonho real, disse até que a água da represa espumava enquanto esvaziava a bexiga. ENTÃO DE REPENTE O BARCO VIROU, e João 'Mansur' se viu caído no chão ao lado da cama, enquanto a mulher furiosa – e toda encharcada junto com lençol, cama e colchão – o xingava de todos os nomes. E o resto da noite João teve de dormir num barracão nos fundos do quintal, ao lado de sua canoa!
Outra vez foi história do Zé Acácio, irmão da Rosa Dutra, que não apanhava café mas viajava de carona, pois pegava serviços de pedreiro na roça. O Zé era muito engraçado... Sempre brincalhão, fazia amizade fácil. Levou a vida numa boa e às vezes comemorava a amizade com doses de pinga. Quando ficava tonto gostava de cantar!! Foi sucesso Absoluto nas Paradas lá no Bar do Vandelo (Monteiros - Volta Grande), sua música era assim: “Sou um homem envenenaaa-aa-doo”, e jogava a perna direita como se fosse um laço, ensaiando um passo de dança. O Zé contou uma história que até hoje não sei se é verdade, pois era conhecido como bom “contador de causos”...
Disse que era casadinho de novo e foi morar num casebre, lá pros lados daquela ponte onde uma virgem se atirou no rio. Quando foi de madrugada – o Zé ainda não tinha dormido mas a lamparina já estava apagada – escutaram um barulho no quintal... Zé Acácio ficou com medo, porém não quis demonstrar à noiva... mas já suava frio e desregulou o intestino! Depois de rezar o terço em silêncio e a oração das almas também, o Zé lembrou que trouxera a Garrucha. É claro que Assombração não morre com tiro de garrucha, mas o Zé tinha de fazer alguma coisa “inhantes” que ficasse com sua imagem suja diante da noiva – e sujasse outras coisas também... Então se aproximou da porta, que já era bem velha e cheia de buracos, espiou e viu “um trem branco” cutucando o moirão da cerca. Fez sinal da cruz, fez pontaria "no vurto" e PUUM!!! (O Zé não explicou donde veio esse "PUM", se foi da arma ou de outro lugar, nos deixando na dúvida e na desconfiança...) Mas disse que o coice da garrucha derrubou metade da porta!
Então acabou-se o barulho lá fora e acabou-se a lua-de-mel também, pois o Zé mais sua noiva, rezaram o resto da noite... Dia seguinte foi conferir o tiro certeiro: Tinha matado a VACA BRANCA, aquela com bicheiras – que se coçava nos paus da cerca...
Zé Acácio já virou anjo. Deixou saudade e um lugar triste e vazio nos bancos da carroceria... ZÉ, onde você estiver, espero que tenha afinado sua música e aprendido direito o passo de dança!!

Essas e outras histórias preencheram nossos dias, amenizando a dura vida do apanhador de café, que corre perigos na estrada em cima de caminhão, precisa disputar marmita com as formigas, beber água quente, às vezes foge do marimbondo e da cascavel à espreita nos pés de café, atrasa a hora de voltar pra casa (e quando isso acontecia, todo mundo gritava: __Ôôô lerdeza, tira o pé da minha jantaaaaa!!) ... sem dizer da confusão no final de quinzena, quando os cálculos do apanhador nunca batem com os valores registrados pela fazenda... E quando a Panha estava ruim? o Pai da renca reclamava pro Turmeiro, que reclamava pro Fiscal de lavoura, que reclamava pro Administrador, que reclamava pro Dono do cafezal, que mentia pra todo mundo dizendo assim:
__ “A VIDA VAI MELHORAR, A VIDA VAI MELHORAR”...
E assim, cantando Martinho da Vila nós seguíamos até o final da Colheita, sonhando com muitos pés de café carregados e esperando por DIAS MELHORES – que nunca chegavam, só nas músicas de J.Quest e mais nada...
E como dizem por aí: “NÃO ri melhor quem ri por último... mas ri melhor QUEM RI, apesar de tudo... e canta pra afastar a tristeza!"
Inté a próxima Panha, pessoal!

Marcelo Lagoa

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