03/01/2014
PANHA NOSSA DE CADA DIA...
"O CAFEZAL":
Quando chegamos em Guapé – 15 de Novembro de 1974 –
apesar do lento progresso, inexistência do asfalto e quase isolamento por causa
das águas de Furnas, a cidade vivia relativa estabilidade. Sítios e fazendas
possuíam gado leiteiro e plantavam seu cafezinho. Um alqueire produzia
suficiente pra sustentar todos de uma família. Na cidade, boa parte da
população sobrevivia das atividades braçais se deslocando pra zona rural.
Tínhamos as Pedreiras, sendo o Carlinhos do São um dos pioneiros na área. O
Canavial chegou num período tardio, com o Zé Jipe, Hermínio, Renã e Melinha da
família Maia trazendo a Usina pro Guapé. E a Cacisa comprava a produção de
leite. Mas o forte mesmo eram os cafezais.
"ÉPOCA DE
COLHEITA":
De todo serviço no cafezal, a COLHEITA era o mais
gratificante. O pagamento era feito por Medida de café colhido. E no balaio
cabia 60 litros. A 'Panha do Café' gerava intenso movimento e a cidade
despertava de sua letargia. Pra muitos, 'a Panha' foi o primeiro serviço
remunerado. Crianças e jovens consumiram suas férias de Julho com os pais, nas
Panhas de Café. Os comerciantes abasteciam o estoque – inclusive de penicos,
como lembra Soninha em um de seus textos – e até aqueles produtos caros,
importados e encalhados – o Bacalhau da Noruega por exemplo, que ninguém deu
conta de comprar na Semana Santa – finalmente sairiam das prateleiras, pois a
população se enchia de dinheiro.
"A CADERNETA":
Era um 'livreto por
excelência', esse caderninho de cinco colunas – Data, Quantidade, Produto,
Valor unitário, Valor Total – foi quase tão importante quanto a Bíblia pra
muita gente. Se o comerciante falava em Cortar a Caderneta... Ai, ai, era o
mesmo que cortar o craque da Seleção na final de Campeonato... Tragédia sem
precedentes! Ali estavam depositadas a esperança da família e a confiança do
vendedor, que fazia as vendas “fiadas”. A Caderneta na ÉPOCA das PANHAS saía do
Vermelho e muita gente pagava suas contas atrasadas. Além de pagar suas contas
velhas, a família comprava quase à vista, pois recebia por quinzena. Assim, o
pai de família recuperava sua autoestima e varria pra debaixo do tapete a
alcunha de “nó-cego” e reafirmava um compromisso de confiança com o comerciante,
que reabria crédito – e claro, nova Caderneta até a próxima “Panha”.
A Caderneta foi tão
importante em nossas vidas que gerou termo próprio: Dizer RASGAR A CADERNETA –
era o mesmo que confiar de olhos fechados em alguém...
"A
ORGANIZAÇÃO":
Instituía-se uma
hierarquia. No topo – e disputando posição com motorista do caminhão, vinha o
'Turmeiro' – Este era O CARA: “aquele que
te chama pra apanhar café nas terras de fulano... Te acorda de manhã, vai na
tua casa uma vez por ano... te chama de amigo, te chama de irmão... fala do
motorista, te mostra um caminhão... aponta uma estrada, te ensina o roteiro...
pra te agradar, fala o preço de um balaio cheio”... (não, não é o Roberto
Carlos cantando, é só um Turmeiro).
Em segundo lugar vinham
certos Pais de Família: Dono de uma renca de filhos e tio de outros tantos, era
quase um Patriarca, pessoa muito respeitada. Com ele vinham a sogra, mulher,
filhos, netos, noras, genros, sobrinhos e mais uns por fora que nasciam meio
despercebidos... Rendiam ao turmeiro quase vinte pessoas cada um! E uma
desavença entre ele e o Turmeiro podia esvaziar o caminhão.
E na base da pirâmide –
embora não menos importantes – vinham os apanhadores comuns.
"OS PONTOS":
Geralmente nos bares de
esquina. Entre eles: Tião Bernardo, na Av.Brasil com Rua 3 de Fevereiro; Bar do
Herinho, perto do Cemitério; Joaquim Barba na Cidade Nova; Nenê do Flauzino
perto do Posto do Tié-tié; Geraldo Vilela, que se mudou pra saída da cidade; e
muitos, muitos mais.
Antes do Sol nascer,
embornal com marmita a tira-colo, a garrafa do café e outra de água (às vezes
Purunga no lugar da garrafa d'agua) os apanhadores de café começavam surgir um
a um. O Ponto funcionava como uma espécie de Reunião Social. Foi um tempo cheio
de histórias, algumas comoventes: Houve uma moça que foi 'panhar' café pra
fazer enxoval, ela ia se casar e a data já estava bem próxima. E teve uma
senhora que não podia ir, mas foi assim mesmo porque também precisava fazer
enxoval – mas era o enxoval do seu filho, pois estava grávida e a criança logo
ia nascer... Porém a criança nunca nasceu porque todo esse esforço lhe provocou
um aborto. E a moça também nunca se casou porque nas panhas conheceu outro
rapaz, abandonou o casamento marcado e com ele fugiu... E assim cada família
tinha sua história e o cotidiano de cada um era debulhado ali no meio da turma,
o que tornava todos uma espécie de família – uma grande família!
"O
TRANSPORTE":
Era em caminhão-toco –
aquele de carroceria curta – que nessa época não fazia fretes pequenos nem
transportava adubo, mas era guarnecido com toldo de lona e bancos de madeira,
onde os bóias-frias se acomodavam. Na verdade eram tábuas fixadas na guarnição
da carroceria e um toco pregado no meio, pra não se quebrar no caminho. Medidas
de segurança não existiam... Apesar dos tristes acontecimentos – como aquele de
Sto. Antônio que atingiu catorze famílias na década de 80 – Apesar disso houve
poucos acidentes fatais se levarmos em conta o intenso movimento das colheitas
que aconteceram na região por muitos anos nessas condições tão precárias. Ainda
cansados do dia anterior, o povo embarcava na carroceria e se distraía com todo
tipo de conversa durante a viagem. Toda espécie de assuntos: do religioso ao
profano – principalmente esses últimos – que deixariam Padre João de cabelo em
pé se ouvisse.
Havia muita história
recheada com piadas e brincadeiras, que ninguém levava a sério pois sabia que
80% era invenção. Embora raro por essas bandas, o Animal Veado era o mais citado entre a peãozada, que não perdia
nenhuma oportunidade de se expressar! Apesar do 'baixo nível' de comunicação,
esse povo Bão de Prosa distraía a todos, subtraindo muitas risadas, fazendo
esquecer os solavancos do caminhão, a umidade do orvalho e o frio cortante no
rosto, nessa vida atribulada de bóia-fria.
"AS IDEIAS":
Lembro do sonho de João
'Mansur' – era um senhor que morou uns tempos de caseiro na Volta Grande, lá
nas terras do Jafé, daí o seu nome, que pegou emprestado do patrão – João
contou que saiu num barco a pescar, e o barco ia ligeiro. Deu vontade de urinar
(ele falou MIJAR, mas não vou usar palavras de baixo calão num texto tão
decente, pra não ficar muito "descente"...) então se dirigiu à proa
do barco pra fazer o serviço. Tranquilo, ele admirava a belezura da água
cristalina recebendo sua contribuição líquida e amarela, fruto de uma
cervejada... admirava os passarinhos no galho da árvore a comer goiabas e o
Tiziu que cantava e dava um pulinho... tão detalhista num sonho real, disse até
que a água da represa espumava enquanto esvaziava a bexiga. ENTÃO DE REPENTE O
BARCO VIROU, e João 'Mansur' se viu caído no chão ao lado da cama, enquanto a
mulher furiosa – e toda encharcada junto com lençol, cama e colchão – o xingava
de todos os nomes. E o resto da noite João teve de dormir num barracão nos
fundos do quintal, ao lado de sua canoa!
Outra vez foi história do Zé Acácio, irmão da Rosa
Dutra, que não apanhava café mas viajava de carona, pois pegava serviços de
pedreiro na roça. O Zé era muito engraçado... Sempre brincalhão, fazia amizade
fácil. Levou a vida numa boa e às vezes comemorava a amizade com doses de
pinga. Quando ficava tonto gostava de cantar!! Foi sucesso Absoluto nas Paradas
lá no Bar do Vandelo (Monteiros - Volta Grande), sua música era assim: “Sou um
homem envenenaaa-aa-doo”, e jogava a perna direita como se fosse um laço,
ensaiando um passo de dança. O Zé contou uma história que até hoje não sei se é
verdade, pois era conhecido como bom “contador de causos”...
Disse que era casadinho
de novo e foi morar num casebre, lá pros lados daquela ponte onde uma virgem se
atirou no rio. Quando foi de madrugada – o Zé ainda não tinha dormido mas a
lamparina já estava apagada – escutaram um barulho no quintal... Zé Acácio
ficou com medo, porém não quis demonstrar à noiva... mas já suava frio e
desregulou o intestino! Depois de rezar o terço em silêncio e a oração das
almas também, o Zé lembrou que trouxera a Garrucha. É claro que Assombração não
morre com tiro de garrucha, mas o Zé tinha de fazer alguma coisa “inhantes” que
ficasse com sua imagem suja diante da noiva – e sujasse outras coisas também...
Então se aproximou da porta, que já era bem velha e cheia de buracos, espiou e
viu “um trem branco” cutucando o moirão da cerca. Fez sinal da cruz, fez
pontaria "no vurto" e PUUM!!! (O Zé não explicou donde veio esse
"PUM", se foi da arma ou de outro lugar, nos deixando na dúvida e na
desconfiança...) Mas disse que o coice da garrucha derrubou metade da porta!
Então acabou-se o
barulho lá fora e acabou-se a lua-de-mel também, pois o Zé mais sua noiva,
rezaram o resto da noite... Dia seguinte foi conferir o tiro certeiro: Tinha
matado a VACA BRANCA, aquela com bicheiras – que se coçava nos paus da cerca...
Zé Acácio já virou anjo.
Deixou saudade e um lugar triste e vazio nos bancos da carroceria... ZÉ, onde
você estiver, espero que tenha afinado sua música e aprendido direito o passo
de dança!!
Essas e outras histórias preencheram nossos dias,
amenizando a dura vida do apanhador de café, que corre perigos na estrada em
cima de caminhão, precisa disputar marmita com as formigas, beber água quente,
às vezes foge do marimbondo e da cascavel à espreita nos pés de café, atrasa a
hora de voltar pra casa (e quando isso acontecia, todo mundo gritava: __Ôôô
lerdeza, tira o pé da minha jantaaaaa!!) ... sem dizer da confusão no final de
quinzena, quando os cálculos do apanhador nunca batem com os valores
registrados pela fazenda... E quando a Panha estava ruim? o Pai da renca
reclamava pro Turmeiro, que reclamava pro Fiscal de lavoura, que reclamava pro
Administrador, que reclamava pro Dono do cafezal, que mentia pra todo mundo
dizendo assim:
__ “A VIDA VAI MELHORAR, A VIDA VAI MELHORAR”...
E assim, cantando
Martinho da Vila nós seguíamos até o final da Colheita, sonhando com muitos pés
de café carregados e esperando por DIAS MELHORES – que nunca chegavam, só nas
músicas de J.Quest e mais nada...
E como dizem por aí: “NÃO ri melhor quem ri por
último... mas ri melhor QUEM RI, apesar de tudo... e canta pra afastar a
tristeza!"
Inté a próxima Panha, pessoal!
Marcelo Lagoa
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