terça-feira, 30 de junho de 2015

17º O Lar São José

Paredes gigantes, assim como janelas e portas altíssimas. E o pátio também.
Assim como todas construções e paisagens que visitamos na infância, que ficam gravadas na memória como espaços imensos até que os visitemos outra vez, quando nos tornamos adultos.

O Sol se descobriu por cima das árvores, seria talvez oito horas da manhã, num desses dias de Junho ou Julho, quando o astro-rei dá uma esticadinha mais ao Norte e preguiçosamente levanta mais tarde em todas manhãs.

O Joaquim, um anãozinho negro e mudo, subia do pasto carregando gravetos, um feixe de lenhas quase de sua própria altura, que seria usado durante o dia todo no fogão da Conferência. Na cozinha, o som do café sendo moído. Gravetos do dia anterior já crepitavam no fogão a lenha. Em breve a bebida forte exalaria o aroma, expulsando toda preguiça.

Os quartos, com as portas voltadas para o enorme pátio e as janelas do lado contrário contemplando a vastidão do Campo Sete, um por um se abriam. Ali descansavam do enfado da vida os velhinhos e doentes, pessoas enjeitadas pela família, ou que perdeu na vida seus entes queridos, gente esquecida pelos de seu próprio sangue. Alguns, são humanos que foram tratados como animais lá fora.
Não tendo mais ninguém neste mundo que se importasse com eles, contavam com a misericórdia da Conferência e de seus benfeitores, que diligentemente não deixavam faltar ali o pão de cada dia.

Francisca, moradora muito antiga, com uma vassoura de assa-peixe varria o pátio desde manhãzinha.

Ao fundo, uma pequena horta comunitária onde se plantava verduras e legumes, que ajudavam a complementar a dieta, era regada pelo João Marques. Mudo como uma pedra, ranzinza e muito independente, negava-se a morar com os outros asilados. Tinha seu próprio quartinho, separado da construção. Porém, de olhos vivos e sempre atento, cuidava com zelo das hortaliças arrancando as ervas daninhas que de teimosas sempre brotavam outra vez.

Embora houvesse um grupo de benfeitores e a Igreja também ajudava, havia entre eles uns três ou quatro pedintes, que saíam por toda cidade a pedir esmolas. De embornal tiracolo, traziam todos os dias um pouco mais de arroz, café, feijão. Um pedaço de pão e até banha de porco! Alguns conseguiam cinco ou seis cruzeiros no dia, com o qual comprava fumo ou guloseimas no boteco do Gêra, do Zé Buck ou do Joaquim Barba.

A Isabela levantava cedo e não penteava os cabelos. Surda de nascença, nunca aprendeu falar. Soltava grunhidos e resmungos, quando queria se comunicar. Inofensiva se não lhe provocassem, ficava furiosa com a molecada, que morria de medo dela. Não se podia passar perto da Isabela, quando estava ao lado de algum monte de pedras. A pontaria dela era certeira!

Fi-fi-rim, firim-fom, às vezes “Minha Gata” acordava feliz, e tomando sua gaitinha tocava músicas de cor. Um dia ele me contou que já nasceu doente das vistas, enxergando pouco, e cedo perdeu o olho esquerdo. E quando era mocinho, quase não enxergando nada, precisou correr das investidas de uma vaca no pasto, e se jogando debaixo da cerca furou-se nos espinhos, e naquele dia perdeu o restinho de luz no olho direito.
Perguntei-lhe se lembrava das coisas que tinha visto… segurou a gaita com a mão esquerda e com a direita coçou a testa… fechou os olhos brancos por longo tempo e deu um suspiro.
__Sim,menino, eu lembro de algumas coisas. Vi muito pouco desse mundo. E já estou velho e faz tempo que sou cego. Já não me lembro mais das cores, nem do desenho das casas, mas ainda vejo meu pai correndo ao meu encontro enquanto a vaca furiosa me perseguia. Sim, meu pai foi a última imagem que eu vi.
Triste história do Minha Gata! Mas sabia andar por toda cidade e voltava pra Conferência sem se perder. Com a bengalinha reconhecendo terreno, descia pra cidade todos os dias percorrendo botecos e vendas. Gostava das crianças e imitava muito bem os gatos! Era nossa alegria pedir a ele que miasse! E ele seguia feliz, ouvindo as risadas e imaginando o rosto risonho da criançada. Só imaginando, porque seus olhos nunca mais viram a luz do dia.

A Pachola era muda, miudinha e magricela. Maltratada pela vida, aquele caquinho de gente também saía cedo pra mendigar. Descalça, chegava nas casas sem bater palmas. Se o portão não tivesse trancado, entrava sem avisar. Um dia mamãe estava encerando o chão de casa, quando às suas costas percebeu um vulto passando. Virou-se e olhou aterrorizada: Era a Pachola, que entrando quintal adentro, nos observava de pé ao lado da porta. Foi um grande susto! Não estávamos acostumados com isso! Pois em São Paulo, quando alguém entrava nas casas, era bandido! Mas a Pachola coitada, esperava apenas a esmola…

Na Conferência, algumas pessoas não saíam dos quartos. Eram os paralíticos. Demasiado velhos ou doentes, passavam o dia a contemplar a janela. De suas camas viviam a vida contemplativa, ouvindo lá fora o cantar do pássaro-preto, do anum, do sabiá, o arrulhar das pombas no telhado e o barulho das galinhas e angolas do terreiro. A alegria dessa gente era receber visitas. Algumas tinham prazer de falar de suas vidas. Lembrar os filhos que se foram, os pais que perderam, os amores e aventuras, a profissão que exerceram, o que tiveram e o que perderam… Com as lembranças, traziam por uns momentos a vida pra dentro do quarto. Mas quando não aparecia ninguém, todos os dias se tornavam longos e iguais.

O Adolfo vivia de cabeça baixa, olhando pro chão. Preocupado com os pés, tinha um tique de amarrar trapos de pano colorido nos dedos. Gostava de andar descalço também. Perambulando nas ruas, voltava só pra comer e dormir.

Ali escutei muitas histórias. As velhinhas da Conferência me falavam do Saci-Pererê. Por causa delas, saí correndo um dia perseguindo um redemoinho de vento, por todo o Campo Sete! É que me disseram que se conseguisse jogar uma peneira em cima, eu capturava o Saci. Mas a peneira tinha que ter uma cruz desenhada no meio…

Eu queria acompanhar o Joaquim na coleta de gravetos, mas ele nunca permitiu. Com acenos e caretas, tentou explicar que havia ali perto um “Buracão” e era perigoso cair dentro dele, e se machucar ou morrer. Mas eu era teimoso. Uma vez entrei lá só pra pegar tabatinga, uma argila colorida pra fazer moldes de barro. No Buracão tinha tabatinga vermelha, amarela e branca.

Atrás da Conferência, o terreno segue em declive até a margem da represa.
Foi na Conferência que me contaram pela primeira vez sobre o “Nego d'agua”, um ser esquisito, misturado com gente e macaco, que vivia no fundo da represa e gostava de virar as canoas. E por causa disso, não me arriscava a descer até lá.

Também lá ouvi histórias da cidade velha. Diziam que pro lado do Barreirinho tinha muita onça naquele tempo. Um dos velhinhos, quando ainda era moço, veio na cidade pra namorar. Era noite escura quando voltou pra casa e escutou o miado da onça. A onça é traiçoeira e só ataca pelas costas. Então ele quebrou um galho verde e andando de costa, seguiu até o sítio, que ficava pras bandas do Barreirinho numa antiga estrada que levava até Passos, e foi arrastando o galho no chão, fazendo barulho, sem nunca se virar, com medo da onça o pegar desprevenido! Também ali me contaram que de vez em quando à noite descia uma tropa na rua do cemitério, e quando se aproximava do portão, sumia sem ninguém saber de onde veio e pra onde foi…

A Conferência me traz boas lembranças. Lembranças de uma infância feliz. Eu devia ter meus seis ou sete anos de idade. O Campo Sete, o pátio da Conferência, as paredes, tudo parecia estranhamente alto e grande pra mim. Essa imagem durou muitos anos na memória.
Depois que construíram as casas do Programa Habitacional em cima do Campo Sete, fui visitar minha irmã que morou numa das casinhas, em 2001. O quintal da casa era virado pro Buracão. Quando lá cheguei, achei tudo muito estranho: A erosão não era tão grande assim, como eu imaginava. O Campo Sete cedeu lugar para as casa do Programa Habitacional, e o espaço agora parecia tão minúsculo!
Nesse dia, fui visitar a Conferência. Meus bons velhinhos já não estavam mais lá. A Conferência continuava no mesmo lugar, mas os velhinhos cansaram da vida e um dia qualquer bateram asas e voaram pela janela. Se foram com os pássaros-pretos, os anuns, os sabiás e as pombinhas!

O que fizeram daquele enorme pátio? E porque os quartos se tornaram tão pequenos? A mesa da cozinha, o fogão à lenha, as portas, paredes e janelas se tornaram baixas, e a horta mudou de lugar. Tudo diferente, e aquele mundo enorme que eu tinha na mente virou fumaça, dando lugar pra realidade.

Mas a Conferência continua lá, cumprindo seu louvável papel: Hoje seus habitantes são outros, pessoas que outrora jovens, hoje se tornaram velhos. Antes saudáveis, hoje não podem mais trabalhar. Antes cheios de amigos, hoje isolados. Mas estão lá, com a Conferência misericordiosamente de braços abertos, a zelar pelos desamparados.
Quero lhe fazer um convite: Visite também a Conferência, hoje todos a chamam pelo nome verdadeiro: “Lar São José”.
Visite os velhinhos. Isso fará bem ao teu coração e à tua alma.

domingo, 17 de maio de 2015

16º Jiló

13/05/2015
Ângelo e Gilmar – "Jilú" e "Jiló".

Foi na década de 80 que conheci a turma do Dorvalino Dutra:
Hermes, Ângelo e Gilmar. Havia também na turma do Dorvalino uma ou duas irmãs deles loirinhas, muito bonitas. E quem sabe um tubé de irmãos que não conheci todos, conheci apenas os três que mencionei os nomes, pois estudaram comigo no Ginásio. Gostavam muito de futebol. Falavam de futebol. Viviam o futebol no recreio e dentro da sala de aulas também.

Porém, eu nunca me importei com futebol. Era um esporte que eu praticava apenas nas aulas de Educação Física, por extrema obrigação porque sabia que se não participasse, o Willian marcaria faltas no Diário de Classe. E faltas na aula de Educação Física faziam com que o aluno entrasse “de recuperação” em todas as outras matérias no final do ano!
Mas era um esporte e assunto favorito de meus coleguinhas de escola. E de tanto ouvir falar nisso, acabei me interessando até pela Copa do Mundo que se deu em 1982, quando estava eu na 7ª Série – foi assim que aprendi o significado das letras “CCCP” estampadas de branco na camisa vermelha da União Soviética: “Camaradas, Cuidado Com Pelé”, e comecei prestar mais atenção aos jogos, como aquele jogo na segunda-feira (14/06/82) entre Brasil e União Soviética, com nossa vitória por 2x1... ou o empate da União Soviética com Escócia, que aconteceu uma semana depois, numa terça-feira à tarde – cujo resultado ouvi no radinho da Diola sintonizado no jogo, dentro da Sala do Mimeógrafo onde fui buscar as folhas de Prova de Geografia a pedido da Professora Lara... Resultado que nos causou alívio porque assim o Brasil se classificava em 1º lugar e seria “cabeça de chave” na próxima fase!

Nunca fomos aquele tipo de amigos que frequentava a casa um do outro, mas na escola sempre gostei de conversar e sentar perto deles, pois a irreverência do Jilú e a displicência do Jiló me divertiam bastante.
Éramos cúmplices de "cola" nas provas e testes, eu e o Jiló.
Por detrás daquela aparência desanimada e olhar sonolento, dava-se a impressão que Gilmar estava sempre com preguiça...
Mas não era bem assim! Gilmar foi um cara inteligentíssimo. Guardava detrás daquela aparência um senso bem crítico – diria até irônico, e de repente se saía com reações e frases brilhantes conforme cada situação que se apresentasse dentro da sala de aulas: Fosse um dever de casa que não trouxe pronto, fosse um teste do qual não estudou, fosse uma questão não copiada do quadro-negro... No fim, sempre se saía muito bem e suas notas no final do bimestre eram boas.

Sou alguém apartidário (alguém sem partido político, um alguém que vota em Pessoas, não em Partidos), mas a pedido do meu amigo Gilmar, tempos depois o ajudei a desenhar uma enorme Estrela do PT naquele muro que ficava entre a casa do Dr. Lauro Correa e a Loja do Vitor Mascate, por ocasião da campanha política.
A loja me parece que hoje tem outro nome. Acho que é JC Variedades...
O Lauro Correa há muitos anos que se foi – e o muro não sei se ainda está lá.
A Estrela, com certeza já sumiu há muito tempo.

E hoje, para minha grande surpresa me vejo diante de uma foto antiga, de nossos jogadores de futebol do Guapé – o ano da foto foi 1989. Foi numa publicação do Edilson do Juca da Maruca, que postou no Facebook...
E lá no cantinho direito da foto, agachado estava o Gilmar!
Então bateu uma grande saudade da escola, dos meus amigos e colegas do Ginásio, da Copa do Mundo de 1982 (que perdemos para a Itália e que me deixou desconsolado, tirando de mim a vontade de assistir outras Copas... Por isso não me importei tanto com nosso fiasco de 7x1 para Alemanha na Copa de 2014!) e bateu a saudades da adolescência, de quando sonhávamos em tirar o diploma, prosseguir os estudos, seguir alguma carreira e ser alguém na vida!

O Ângelo segundo informações que me chegam, trabalha até hoje numa escola. O Wadilson também é professor – de História, mas seria um bom geógrafo, podem crer – pelo tanto que esse homem viaja! O Divininho irmão do Gaspar dá seu ar de graças como locutor de rádio e faz trabalhos pedagógicos com as crianças... E por aí vai, meus colegas e amigos do Ginásio...
Mas o Gilmar (ou Jiló – como era apelidado, para combinar com o apelido do Ângelo – o Jilú)... Bom, o Gilmar era de compleição franzina. Magérrimo, era um graveto, como eu também era.
Eu não gostava de jogar futebol, mas ele gostava!
Seu olhar mortiço lhe dava um ar ainda mais cansado quando jogava bola. Me lembro perfeitamente de suas caretas, do seu jeito de colocar as mãos na cintura e se curvar pra frente logo após uma carreira atrás da bola, cansado – talvez com dor nos rins. Mas o futebol era sua vida! Seria um grande jogador no futuro? Quem sabe? Eu não sei...
Mas o esporte que era sua vida, um dia lhe arrancou dos Campos de Futebol para coloca-lo nos Campos da Saudade... E meu amigo Gilmar hoje é apenas lembranças e uma fotografia!
Jiló!... Esse apelido do amigo Gilmar é o nome de uma fruta, um vegetal que se cozinha, refoga ou faz saladas. Por ironia do destino, consumir jiló faz bem pro coração, mas o Gilmar morreu de enfarto!
Não acho amargo o jiló. Amargo mesmo é o sabor de perder um amigo, arrancado dessa vida tão de repente, em meio a um jogo de futebol, indo embora tragicamente sem ter tempo de se despedir da família e de ninguém!
Então ao ver a foto, resolvi escrever estas palavras sobre ele. É uma homenagem ao meu amigo e colega de Ginásio, Gilmar Dutra.
E que Deus o tenha, amigo!

Marcelo Lagoa
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Publicado no Bão de Prosa em 13/05/15.
Soninha escreveu:
Marcelo, na igreja quando foi homenageado uma música foi tocada.
Aquela do Garrincha.
Uma estrofe:
"Hoje outros craques repetem as suas jogadas
Ainda na rede balança seu último gol
Mas pela vida impedido parou
E para sempre o jogo acabou
Suas pernas cansadas correram pro nada
E o time do tempo ganhou ''

quarta-feira, 15 de abril de 2015

15º Na fazenda Santa Marta

21/04/2014
O ZEQUINHA e a FAZENDA SANTA MARTA

Lá pros cafundós onde Judas perdeu as meias (as botas, perdeu uma légua antes) na estrada que vai na direção de Cristais, viajantes do Guapé passam em frente a Fazenda Santa Marta. Fica ali na Volta Grande. Segundo a lenda, um lugar encantado... Nas costas da fazenda tem a grande serra. Dizem que a “mãe do ouro” desce ali de vez em quando... Juro que vi este sinal nos céus, numa noite estrelada! Garanto que não tinha bebido nada, nem mesmo leite. Eu estava "são". Seguindo adiante, a estrada tem bifurcação: em frente se vai para Balsa do Porto Fernandes. Mas virando à direita, logo se alcança o Patrimônio São José – onde morava João Alexandre, velho benzedor e encantador de cobras, que fazia reza pros animais peçonhentos fugirem do pasto... geralmente os bichos saíam de um pasto e iam pro pasto do vizinho, o que garantia ao João Alexandre nova contratação dos serviços !! Era a única pessoa de pele branca naquela comunidade essencialmente negra.
E seguindo a estrada adiante em caminho tortuoso, atinge-se os limites de Guapé e é possível chegar até Boa Esperança por ali.

Conheci a Fazenda Santa Marta em 1985, quando meu pai levou turmas do Guapé pra fazer plantio de café. Fazenda distante da cidade, bem pra frente da Comunidade Monteiros (onde tem o famoso Bar do Vandelo) e ainda pra frente do Bar do Tulinho, que fica logo depois da Ponte da Noiva – onde a história conta de uma virgem que se jogou dali por causa de decepções amorosas - Essas terras da fazenda, que por muito tempo pararam no tempo e na tecnologia, conheceram uma revolução quando o Sr.Pedro Orlandi – de Jaboticabal, SP – comprou-a da família Fernandes e plantou café em cada palmo de terra aproveitável. Os trabalhadores vizinhos que moravam nas terras do “Capitinga” e Félix João, vieram em peso trabalhar ali. Muitas famílias tiraram pão-de-cada-dia naquelas terras generosas. Por lá fiz muitos amigos.
E alguns anos depois – precisamente em 1988 – voltamos para lá. Não como diaristas que plantavam café – mas voltamos definitivamente, “de mala e cuia” pois meu pai foi chamado para ajudar cuidar do cafezal que tinha crescido e já produzia. Entre muitos serviços que experimentei ali – entre eles, aprendi lidar com três tipos de Máquinas que Lavavam, Secavam e Limpavam Café, além da Máquina de Limpar Arroz e da Máquina de Solda Elétrica, na Oficina. Porém o mais divertido foi serviço de Tratorista... A Fazenda possuía um Ford 6610, dois Massey Ferguson 50-X e dois Agrale 6100. O “Fordão azul” – como o chamávamos – precisava de autorização especial para pilotar. Senhor absoluto dele era o Miltão, o mais antigo tratorista da Fazenda. E eu... bom, eu fui tratorista de um pequenino Agrale 6100!! Esse trator que se parece com brinquedo tem um metro e vinte de altura e não possui partida elétrica. Pra ligar, roda-se uma manivela no para-choques e quando está embalado, o trator sacode, cospe fumaça e dispara o motor. O ronco ultrapassa de longe os 90 decibel e dá-se a impressão que tudo vai desmontar ali no chão. E parece barulho de picadeira, serra elétrica ou metralhadora da 2ª Guerra Mundial. O Zequinha foi meu braço direito nessa peleja, me ajudando aqui e ali nas horas de ligar o possante e nas horas de virar saco de adubo dentro do enorme compartimento que eu engatava no trator. Esse compartimento parecia uma mochila na cacunda do tratorzinho e às vezes o peso era tão grande que o coitadinho empinava e soltando fumaça preta, seguia pelo carreador apenas com as rodas de trás tocando no solo.
Sem governo na direção, precisava controlar o trator nos dois freios independentes, que hora viravam-no pra direita, hora pra esquerda...
Um detalhe: o trator pode ficar mais “largo” ou mais “estreito”, basta que virem suas rodas traseiras de modo que as calotas – que se parecem com grandes bacias – ficam hora viradas pra fora, hora viradas pra dentro. Sem atinar para esse pequeno, porém importante detalhe, uma vez cismei de entrar nas ruas de café cuja inclinação lateral era grande, só porque outro trator, igualzinho aquele que eu pilotava também tinha passado por lá! O primeiro tratorista passou “gradeando” a rua de café, revirando a terra para descobrir a raiz do mato e assim facilitar a limpeza do cafezal. Eu quis passar pela mesma rua, porém meu trator estava com as rodas “estreitas”... Além disso, carregava uma bomba de pulverizar com 200 litros de remédio! Foi uma loucura. O tratorzinho fungou, chiou e virou de rodas pra cima. Era pequenino, de forma que eu apenas passei a perna por cima da direção e escorreguei morro abaixo, com perigo do trator fazer o mesmo, passando por cima de mim!

Ah! Esqueci-me de apresentar o Zequinha!!
Zequinha é filho do Zé Graciano, morou ao lado do Porto Araúna quando seu pai era vivo. Esse moço sofreu poliomielite quando criança, perdendo os movimentos de um pé. Apesar da dificuldade, meu amigo Zequinha era pessoa muito alegre e também muito ágil. Ninguém se atirava - fugindo por baixo do cercado de madeira do curral com tanta presteza como fazia o Zequinha, se um boi ficasse bravo...
O patrão nomeou-o “Comprador de animais” pra Fazenda. Entendia do assunto como ninguém sobre cavalos, burros e vacas. Na Fazenda, lidou com carneiros também. O primeiro cavalo que comprou, morreu 15 dias depois... E a vaca tinha defeito nas tetas e nunca deu leite... Mas Zequinha era querido por todo mundo, muitíssimo engraçado e divertido, além de versátil no serviço. Se precisasse pegar galinhas pro almoço, ou se os porcos furavam o mangue, era só chamar o Zequinha! Se o açude estourasse ou precisava matar um carneiro pro patrão, chamavam o Zequinha! E se um gambá invadia o galinheiro e roubava galinhas à noite? Aí não adiantava chamar Zequinha porque ele dormia em serviço e depois dizia que eram dois gambás: Correu atrás de um enquanto o outro lhe roubava as galinhas...
Certa vez comprou um burro pra trabalhar com “bico-de-pato” plantando feijão no meio das ruas de café. Dizia pra nós que sabia a idade do animal pelos dentes... Esse burro deve ter morrido com mais de 100 anos, porque naquele tempo Zequinha já falava que o animal tinha quase 70 anos!
Zequinha me ajudava misturar adubo e água na caçamba a tiracolo que levávamos no tratorzinho... empoleirava no trator e íamos nós dois pulverizar cafezal, contando causos um pro outro conforme era possível, pois o barulho do trator era extraordinário! Nunca o vi tão ligeiro como no dia em que se jogou e passou voando por baixo dos pés de café na hora que o trator esbarrou numa caixa de maribondos...

Um dia Zequinha chegou da cidade todo faceiro! Tinha comprado dentadura nova... Mas Zequinha gostava de beber umas Tapiocas e Caninha 51 nos fins de semana... pouca coisa, nada que lhe atrapalhasse o equilíbrio, mas suficiente para torna-lo vítima de situações engraçadas; e num desses fim de semana Zequinha cismou com a dentadura, tirou e guardou-a no bolso detrás da calça. De repente aparece Zequinha lá na Sede da Fazenda, com a dentadura nas mãos, feita em 4 pedaços... Tinha esquecido no bolso da calça e sentou em cima! Além de levar uma mordida no traseiro com seus próprios dentes, ficou sem dentaduras depois! A solução foi remendar o objeto com Super-Bonder... Não ficou serviço de profissional, nada odontológico, mas Zequinha usou a dentadura que eu remendei por vários anos depois!

O Zequinha contava uns causos dizendo que era pessoa bem corajosa e enfrentava qualquer perigo, mesmo que fosse de noite, na quaresma e com lua cheia... Então certo dia pregamos uma peça no Zequinha. Foi assim: Enchemos a perna de uma meia-fina com palha de feijão e amarramos linha de pescar pra puxar. Ficou parecendo uma cobra preta e comprida, igual uma sucuri. Ficamos à espreita por detrás de uma árvore na entrada da Fazenda, só esperando Zequinha passar. Tinha anoitecido e o caminho ficou escuro, quando de repente Zequinha apareceu fumando cigarro de palha. Ao longe, só dava pra ver a brasa do cigarro subindo e descendo... subindo e descendo, conforme Zequinha caminhava e se aproximava de nós. Então na hora certa puxamos a linha bem devagar e a “cobra de meia” veio se arrastando, serpenteando, cruzando a estrada na frente dele...
E do Zequinha eu não sei, estava escuro e não o vi, mas a brasa de cigarro voou uns dois metros pra cima e ouvimos um grito assim: “VALHA-ME NOSSA SENHORA! CRENDEUSPADRE, Ô BICHO FERÓIZ! VAI PRA LONGE, TREM DOS INFERNO!”
Zequinha realmente foi corajoso! Sumiu na escuridão noturna até dia seguinte e de manhã cedinho quando saímos pra tomar café, lá estava ele na claridade do dia com uma vara de três metros na mão, cutucando as moitas de capim, resmungando: “Aparece, seu fio de uma égua... Aparece se ocê for hóme, fiote de coisa ruim...” E assim passou dia todo procurando a cobra, que ele chamou de "cobra-mandada" (*)  e até hoje não sabe que o bicho era uma cobra de meia-fina recheada com palha...

Zequinha é vivo e mora ao lado do bar do Zanone, na Cidade Nova. Está lá pra provar a veracidade do texto. Quem quiser, pode procurá-lo. Com certeza se lembrará de mais causos além desses e poderá lhes contar. A quem puder entrevista-lo, por favor leva meu grande abraço com  muita saudades e diz a ele que carrego boas lembranças do tempo que trabalhamos juntos na Fazenda Santa Marta.

(*) Cobra-mandada: Significa cobra de macumba, bicho que aparece por feitiçaria.

14º Coração Amargurado

26/01/2014
Coração Amargurado

Hoje, revirando álbuns de meus amigos, olhando fotos antigas e matando saudades, busquei notícias de pessoas e amigos que há muito tempo não via, pessoas que o passado de duas décadas e meia nos tornou longínquos – ainda que distantes fisicamente e no tempo, mas guardados no coração.
Lembro de quando trabalhei na Fazenda, em Volta Grande, lembro de quando fui encarregado de levar adubo com trator e carreta, e distribuí-lo nas sacolas dos trabalhadores braçais, que percorriam rua por rua aquele enorme, gigantesco cafezal, espalhando Ureia e Cloreto de Potássio sob os pés de café...

Lembro que ela foi deficiente desde o nascimento, e tinha dificuldades de andar por causa de um de seus pés... E se hoje reclamamos das calçadas imperfeitas e das ruas asfaltadas, imagina naquele tempo, a situação de quem tinha dificuldades de locomoção, mas precisava enfrentar a roça pra sobreviver!! percorrer a lavoura muitas vezes em declive, com as roupas em farrapos, carcomida pelo adubo, carregando uma sacola quente de plástico à tiracolo, cheia de adubo pra espalhar no solo do cafezal... Mas ela enfrentava assim mesmo, foi muito corajosa e responsável, cuidava da casa onde seu pai “Tião Chiquinha” adoecido sem poder trabalhar, dependia do pão que ela podia trazer pra dentro de casa.
Quando era eu a distribuir o adubo, sempre colocava uma porção bem menor em sua sacola, pois sabia que a dificuldade dela era dobrada, em relação a seus companheiros... MAS COMO EU ADMIRAVA A MARCIONE!! mais nova do que eu naquela adolescência, mulatinha de traços delicados, quase franzina, mas com garra e coragem bem maiores do que muitos rapazes, sempre trabalhando com afinco na imensidão do cafezal, se apoiando no único pé bom que a natureza lhe deu... Não abria a boca pra nada, não reclamava.
Mesmo quando não era eu, mas sim outro peão que levava o adubo para o meio da roça – e insensível – carregava sua sacola com mesmo tanto dos outros sem se aperceber das dificuldades que ela enfrentava, mesmo assim ela sempre lutou pra acompanhar suas companheiras e fazer jus ao minguado salário da roça, sem nunca reclamar, sem nunca desistir...

Então hoje conversando com a Elizabeth Sallum, cujo pai tem fazenda por lá, buscando notícias de todo mundo, ao perguntar também sobre ela, esperava ouvir qualquer coisa, esperava ouvir que se mudou pra cidade, ou que permanecera na roça, que estava casada, viúva ou solteira, que tinha filhos e uma bonita família, que tinha melhorado de vida e até ficado rica. Ou continuado pobre, cuidando de seu pai doente... Esperava até ouvir que continuava do mesmo jeito de sempre...
Esperava ouvir tudo, mas não esperava jamais ouvir que já fazem dois anos que faleceu... Deixou quatro filhos no mundo.
Pra alguns a vida é longa e suave. Mas pra outros, pode ser curta e cheia de espinhos...
E dói bastante receber essas notícias...

13º A colheita do Café

03/01/2014
PANHA NOSSA DE CADA DIA...

"O CAFEZAL":
Quando chegamos em Guapé – 15 de Novembro de 1974 – apesar do lento progresso, inexistência do asfalto e quase isolamento por causa das águas de Furnas, a cidade vivia relativa estabilidade. Sítios e fazendas possuíam gado leiteiro e plantavam seu cafezinho. Um alqueire produzia suficiente pra sustentar todos de uma família. Na cidade, boa parte da população sobrevivia das atividades braçais se deslocando pra zona rural. Tínhamos as Pedreiras, sendo o Carlinhos do São um dos pioneiros na área. O Canavial chegou num período tardio, com o Zé Jipe, Hermínio, Renã e Melinha da família Maia trazendo a Usina pro Guapé. E a Cacisa comprava a produção de leite. Mas o forte mesmo eram os cafezais.

"ÉPOCA DE COLHEITA":
De todo serviço no cafezal, a COLHEITA era o mais gratificante. O pagamento era feito por Medida de café colhido. E no balaio cabia 60 litros. A 'Panha do Café' gerava intenso movimento e a cidade despertava de sua letargia. Pra muitos, 'a Panha' foi o primeiro serviço remunerado. Crianças e jovens consumiram suas férias de Julho com os pais, nas Panhas de Café. Os comerciantes abasteciam o estoque – inclusive de penicos, como lembra Soninha em um de seus textos – e até aqueles produtos caros, importados e encalhados – o Bacalhau da Noruega por exemplo, que ninguém deu conta de comprar na Semana Santa – finalmente sairiam das prateleiras, pois a população se enchia de dinheiro.

"A CADERNETA":
Era um 'livreto por excelência', esse caderninho de cinco colunas – Data, Quantidade, Produto, Valor unitário, Valor Total – foi quase tão importante quanto a Bíblia pra muita gente. Se o comerciante falava em Cortar a Caderneta... Ai, ai, era o mesmo que cortar o craque da Seleção na final de Campeonato... Tragédia sem precedentes! Ali estavam depositadas a esperança da família e a confiança do vendedor, que fazia as vendas “fiadas”. A Caderneta na ÉPOCA das PANHAS saía do Vermelho e muita gente pagava suas contas atrasadas. Além de pagar suas contas velhas, a família comprava quase à vista, pois recebia por quinzena. Assim, o pai de família recuperava sua autoestima e varria pra debaixo do tapete a alcunha de “nó-cego” e reafirmava um compromisso de confiança com o comerciante, que reabria crédito – e claro, nova Caderneta até a próxima “Panha”.
A Caderneta foi tão importante em nossas vidas que gerou termo próprio: Dizer RASGAR A CADERNETA – era o mesmo que confiar de olhos fechados em alguém...

"A ORGANIZAÇÃO":
Instituía-se uma hierarquia. No topo – e disputando posição com motorista do caminhão, vinha o 'Turmeiro' – Este era O CARA: “aquele que te chama pra apanhar café nas terras de fulano... Te acorda de manhã, vai na tua casa uma vez por ano... te chama de amigo, te chama de irmão... fala do motorista, te mostra um caminhão... aponta uma estrada, te ensina o roteiro... pra te agradar, fala o preço de um balaio cheio”... (não, não é o Roberto Carlos cantando, é só um Turmeiro).
Em segundo lugar vinham certos Pais de Família: Dono de uma renca de filhos e tio de outros tantos, era quase um Patriarca, pessoa muito respeitada. Com ele vinham a sogra, mulher, filhos, netos, noras, genros, sobrinhos e mais uns por fora que nasciam meio despercebidos... Rendiam ao turmeiro quase vinte pessoas cada um! E uma desavença entre ele e o Turmeiro podia esvaziar o caminhão.
E na base da pirâmide – embora não menos importantes – vinham os apanhadores comuns.

"OS PONTOS":
Geralmente nos bares de esquina. Entre eles: Tião Bernardo, na Av.Brasil com Rua 3 de Fevereiro; Bar do Herinho, perto do Cemitério; Joaquim Barba na Cidade Nova; Nenê do Flauzino perto do Posto do Tié-tié; Geraldo Vilela, que se mudou pra saída da cidade; e muitos, muitos mais.
Antes do Sol nascer, embornal com marmita a tira-colo, a garrafa do café e outra de água (às vezes Purunga no lugar da garrafa d'agua) os apanhadores de café começavam surgir um a um. O Ponto funcionava como uma espécie de Reunião Social. Foi um tempo cheio de histórias, algumas comoventes: Houve uma moça que foi 'panhar' café pra fazer enxoval, ela ia se casar e a data já estava bem próxima. E teve uma senhora que não podia ir, mas foi assim mesmo porque também precisava fazer enxoval – mas era o enxoval do seu filho, pois estava grávida e a criança logo ia nascer... Porém a criança nunca nasceu porque todo esse esforço lhe provocou um aborto. E a moça também nunca se casou porque nas panhas conheceu outro rapaz, abandonou o casamento marcado e com ele fugiu... E assim cada família tinha sua história e o cotidiano de cada um era debulhado ali no meio da turma, o que tornava todos uma espécie de família – uma grande família!

"O TRANSPORTE":
Era em caminhão-toco – aquele de carroceria curta – que nessa época não fazia fretes pequenos nem transportava adubo, mas era guarnecido com toldo de lona e bancos de madeira, onde os bóias-frias se acomodavam. Na verdade eram tábuas fixadas na guarnição da carroceria e um toco pregado no meio, pra não se quebrar no caminho. Medidas de segurança não existiam... Apesar dos tristes acontecimentos – como aquele de Sto. Antônio que atingiu catorze famílias na década de 80 – Apesar disso houve poucos acidentes fatais se levarmos em conta o intenso movimento das colheitas que aconteceram na região por muitos anos nessas condições tão precárias. Ainda cansados do dia anterior, o povo embarcava na carroceria e se distraía com todo tipo de conversa durante a viagem. Toda espécie de assuntos: do religioso ao profano – principalmente esses últimos – que deixariam Padre João de cabelo em pé se ouvisse.
Havia muita história recheada com piadas e brincadeiras, que ninguém levava a sério pois sabia que 80% era invenção. Embora raro por essas bandas, o Animal Veado era o mais citado entre a peãozada, que não perdia nenhuma oportunidade de se expressar! Apesar do 'baixo nível' de comunicação, esse povo Bão de Prosa distraía a todos, subtraindo muitas risadas, fazendo esquecer os solavancos do caminhão, a umidade do orvalho e o frio cortante no rosto, nessa vida atribulada de bóia-fria.

"AS IDEIAS":
Lembro do sonho de João 'Mansur' – era um senhor que morou uns tempos de caseiro na Volta Grande, lá nas terras do Jafé, daí o seu nome, que pegou emprestado do patrão – João contou que saiu num barco a pescar, e o barco ia ligeiro. Deu vontade de urinar (ele falou MIJAR, mas não vou usar palavras de baixo calão num texto tão decente, pra não ficar muito "descente"...) então se dirigiu à proa do barco pra fazer o serviço. Tranquilo, ele admirava a belezura da água cristalina recebendo sua contribuição líquida e amarela, fruto de uma cervejada... admirava os passarinhos no galho da árvore a comer goiabas e o Tiziu que cantava e dava um pulinho... tão detalhista num sonho real, disse até que a água da represa espumava enquanto esvaziava a bexiga. ENTÃO DE REPENTE O BARCO VIROU, e João 'Mansur' se viu caído no chão ao lado da cama, enquanto a mulher furiosa – e toda encharcada junto com lençol, cama e colchão – o xingava de todos os nomes. E o resto da noite João teve de dormir num barracão nos fundos do quintal, ao lado de sua canoa!
Outra vez foi história do Zé Acácio, irmão da Rosa Dutra, que não apanhava café mas viajava de carona, pois pegava serviços de pedreiro na roça. O Zé era muito engraçado... Sempre brincalhão, fazia amizade fácil. Levou a vida numa boa e às vezes comemorava a amizade com doses de pinga. Quando ficava tonto gostava de cantar!! Foi sucesso Absoluto nas Paradas lá no Bar do Vandelo (Monteiros - Volta Grande), sua música era assim: “Sou um homem envenenaaa-aa-doo”, e jogava a perna direita como se fosse um laço, ensaiando um passo de dança. O Zé contou uma história que até hoje não sei se é verdade, pois era conhecido como bom “contador de causos”...
Disse que era casadinho de novo e foi morar num casebre, lá pros lados daquela ponte onde uma virgem se atirou no rio. Quando foi de madrugada – o Zé ainda não tinha dormido mas a lamparina já estava apagada – escutaram um barulho no quintal... Zé Acácio ficou com medo, porém não quis demonstrar à noiva... mas já suava frio e desregulou o intestino! Depois de rezar o terço em silêncio e a oração das almas também, o Zé lembrou que trouxera a Garrucha. É claro que Assombração não morre com tiro de garrucha, mas o Zé tinha de fazer alguma coisa “inhantes” que ficasse com sua imagem suja diante da noiva – e sujasse outras coisas também... Então se aproximou da porta, que já era bem velha e cheia de buracos, espiou e viu “um trem branco” cutucando o moirão da cerca. Fez sinal da cruz, fez pontaria "no vurto" e PUUM!!! (O Zé não explicou donde veio esse "PUM", se foi da arma ou de outro lugar, nos deixando na dúvida e na desconfiança...) Mas disse que o coice da garrucha derrubou metade da porta!
Então acabou-se o barulho lá fora e acabou-se a lua-de-mel também, pois o Zé mais sua noiva, rezaram o resto da noite... Dia seguinte foi conferir o tiro certeiro: Tinha matado a VACA BRANCA, aquela com bicheiras – que se coçava nos paus da cerca...
Zé Acácio já virou anjo. Deixou saudade e um lugar triste e vazio nos bancos da carroceria... ZÉ, onde você estiver, espero que tenha afinado sua música e aprendido direito o passo de dança!!

Essas e outras histórias preencheram nossos dias, amenizando a dura vida do apanhador de café, que corre perigos na estrada em cima de caminhão, precisa disputar marmita com as formigas, beber água quente, às vezes foge do marimbondo e da cascavel à espreita nos pés de café, atrasa a hora de voltar pra casa (e quando isso acontecia, todo mundo gritava: __Ôôô lerdeza, tira o pé da minha jantaaaaa!!) ... sem dizer da confusão no final de quinzena, quando os cálculos do apanhador nunca batem com os valores registrados pela fazenda... E quando a Panha estava ruim? o Pai da renca reclamava pro Turmeiro, que reclamava pro Fiscal de lavoura, que reclamava pro Administrador, que reclamava pro Dono do cafezal, que mentia pra todo mundo dizendo assim:
__ “A VIDA VAI MELHORAR, A VIDA VAI MELHORAR”...
E assim, cantando Martinho da Vila nós seguíamos até o final da Colheita, sonhando com muitos pés de café carregados e esperando por DIAS MELHORES – que nunca chegavam, só nas músicas de J.Quest e mais nada...
E como dizem por aí: “NÃO ri melhor quem ri por último... mas ri melhor QUEM RI, apesar de tudo... e canta pra afastar a tristeza!"
Inté a próxima Panha, pessoal!

Marcelo Lagoa