Paredes gigantes,
assim como janelas e portas altíssimas. E o pátio também.
Assim
como todas construções e paisagens que visitamos na infância, que
ficam gravadas na memória como espaços imensos até que os
visitemos outra vez, quando nos tornamos adultos.
O Sol se descobriu
por cima das árvores, seria talvez oito horas da manhã, num desses
dias de Junho ou Julho, quando o astro-rei dá uma esticadinha mais
ao Norte e preguiçosamente levanta mais tarde em todas manhãs.
O
Joaquim, um anãozinho negro e mudo, subia do pasto carregando
gravetos, um feixe de lenhas quase de sua própria altura, que seria
usado durante o dia todo no fogão da Conferência. Na cozinha, o som
do café sendo moído. Gravetos do dia anterior já crepitavam no
fogão a lenha. Em breve a bebida forte exalaria o aroma, expulsando
toda preguiça.
Os quartos, com as
portas voltadas para o enorme pátio e as janelas do lado contrário
contemplando a vastidão do Campo Sete, um por um se abriam. Ali
descansavam do enfado da vida os velhinhos e doentes, pessoas
enjeitadas pela família, ou que perdeu na vida seus entes queridos,
gente esquecida pelos de seu próprio sangue. Alguns, são humanos
que foram tratados como animais lá fora.
Não tendo mais ninguém
neste mundo que se importasse com eles, contavam com a misericórdia
da Conferência e de seus benfeitores, que diligentemente não deixavam
faltar ali o pão de cada dia.
Francisca, moradora muito antiga, com uma vassoura de assa-peixe varria o pátio
desde manhãzinha.
Ao fundo, uma
pequena horta comunitária onde se plantava verduras e legumes, que
ajudavam a complementar a dieta, era regada pelo João Marques. Mudo
como uma pedra, ranzinza e muito independente, negava-se a morar com
os outros asilados. Tinha seu próprio quartinho, separado da
construção. Porém, de olhos vivos e sempre atento, cuidava com
zelo das hortaliças arrancando as ervas daninhas que de teimosas
sempre brotavam outra vez.
Embora houvesse um
grupo de benfeitores e a Igreja também ajudava, havia entre eles uns
três ou quatro pedintes, que saíam por toda cidade a pedir esmolas.
De embornal tiracolo, traziam todos os dias um pouco mais de arroz,
café, feijão. Um pedaço de pão e até banha de porco! Alguns
conseguiam cinco ou seis cruzeiros no dia, com o qual comprava fumo
ou guloseimas no boteco do Gêra, do Zé Buck ou do Joaquim Barba.
A Isabela levantava
cedo e não penteava os cabelos. Surda de nascença, nunca aprendeu
falar. Soltava grunhidos e resmungos, quando queria se comunicar.
Inofensiva se não lhe provocassem, ficava furiosa com a molecada,
que morria de medo dela. Não se podia passar perto da Isabela,
quando estava ao lado de algum monte de pedras. A pontaria dela era
certeira!
Fi-fi-rim,
firim-fom, às vezes “Minha Gata” acordava feliz, e tomando sua
gaitinha tocava músicas de cor. Um dia ele me contou que já nasceu
doente das vistas, enxergando pouco, e cedo perdeu o olho esquerdo. E
quando era mocinho, quase não enxergando nada, precisou correr das
investidas de uma vaca no pasto, e se jogando debaixo da cerca
furou-se nos espinhos, e naquele dia perdeu o restinho de luz no olho
direito.
Perguntei-lhe se lembrava das coisas que tinha visto… segurou
a gaita com a mão esquerda e com a direita coçou a testa… fechou
os olhos brancos por longo tempo e deu um suspiro.
__Sim,menino, eu
lembro de algumas coisas. Vi muito pouco desse mundo. E já estou
velho e faz tempo que sou cego. Já não me lembro mais das cores,
nem do desenho das casas, mas ainda vejo meu pai correndo ao meu
encontro enquanto a vaca furiosa me perseguia. Sim, meu pai foi a
última imagem que eu vi.
Triste história do
Minha Gata! Mas sabia andar por toda cidade e voltava pra Conferência sem se
perder. Com a bengalinha reconhecendo terreno, descia pra cidade
todos os dias percorrendo botecos e vendas. Gostava das crianças e
imitava muito bem os gatos! Era nossa alegria pedir a ele que miasse!
E ele seguia feliz, ouvindo as risadas e imaginando o rosto risonho
da criançada. Só imaginando, porque seus olhos nunca mais viram a
luz do dia.
A Pachola era muda,
miudinha e magricela. Maltratada pela vida, aquele caquinho de gente também saía cedo pra
mendigar. Descalça, chegava nas casas sem bater palmas. Se o portão
não tivesse trancado, entrava sem avisar. Um dia mamãe estava
encerando o chão de casa, quando às suas costas percebeu um vulto
passando. Virou-se e olhou aterrorizada: Era a Pachola, que entrando
quintal adentro, nos observava de pé ao lado da porta. Foi um grande
susto! Não estávamos acostumados com isso! Pois em São Paulo,
quando alguém entrava nas casas, era bandido! Mas a Pachola coitada,
esperava apenas a esmola…
Na Conferência,
algumas pessoas não saíam dos quartos. Eram os paralíticos.
Demasiado velhos ou doentes, passavam o dia a contemplar a janela. De
suas camas viviam a vida contemplativa, ouvindo lá fora o cantar do
pássaro-preto, do anum, do sabiá, o arrulhar das pombas no telhado
e o barulho das galinhas e angolas do terreiro. A alegria dessa gente
era receber visitas. Algumas tinham prazer de falar de suas vidas.
Lembrar os filhos que se foram, os pais que perderam, os amores e
aventuras, a profissão que exerceram, o que tiveram e o que
perderam… Com as lembranças, traziam por uns momentos a vida pra
dentro do quarto. Mas quando não aparecia ninguém, todos os dias se
tornavam longos e iguais.
O Adolfo vivia de
cabeça baixa, olhando pro chão. Preocupado com os pés, tinha um
tique de amarrar trapos de pano colorido nos dedos. Gostava de andar
descalço também. Perambulando nas ruas, voltava só pra comer e
dormir.
Ali escutei muitas
histórias. As velhinhas da Conferência me falavam do Saci-Pererê.
Por causa delas, saí correndo um dia perseguindo um redemoinho de
vento, por todo o Campo Sete! É que me disseram que se conseguisse
jogar uma peneira em cima, eu capturava o Saci. Mas a peneira tinha
que ter uma cruz desenhada no meio…
Eu queria acompanhar
o Joaquim na coleta de gravetos, mas ele nunca permitiu. Com acenos
e caretas, tentou explicar que havia ali perto um “Buracão” e
era perigoso cair dentro dele, e se machucar ou morrer. Mas eu era
teimoso. Uma vez entrei lá só pra pegar tabatinga, uma argila
colorida pra fazer moldes de barro. No Buracão tinha tabatinga
vermelha, amarela e branca.
Atrás da
Conferência, o terreno segue em declive até a margem da represa.
Foi na Conferência
que me contaram pela primeira vez sobre o “Nego d'agua”, um ser
esquisito, misturado com gente e macaco, que vivia no fundo da
represa e gostava de virar as canoas. E por causa disso, não me
arriscava a descer até lá.
Também lá ouvi
histórias da cidade velha. Diziam que pro lado do Barreirinho tinha
muita onça naquele tempo. Um dos velhinhos, quando ainda era moço,
veio na cidade pra namorar. Era noite escura quando voltou pra casa e
escutou o miado da onça. A onça é traiçoeira e só ataca pelas
costas. Então ele quebrou um galho verde e andando de costa, seguiu
até o sítio, que ficava pras bandas do Barreirinho numa antiga
estrada que levava até Passos, e foi arrastando o galho no chão,
fazendo barulho, sem nunca se virar, com medo da onça o pegar
desprevenido! Também ali me contaram que de vez em quando à noite
descia uma tropa na rua do cemitério, e quando se aproximava do
portão, sumia sem ninguém saber de onde veio e pra onde foi…
A Conferência me
traz boas lembranças. Lembranças de uma infância feliz. Eu devia
ter meus seis ou sete anos de idade. O Campo Sete, o pátio da
Conferência, as paredes, tudo parecia estranhamente alto e grande
pra mim. Essa imagem durou muitos anos na memória.
Depois que construíram as casas do Programa Habitacional em cima do Campo Sete, fui visitar minha irmã que morou numa das casinhas, em 2001. O quintal da casa era virado pro Buracão. Quando lá cheguei, achei tudo muito estranho: A erosão não era tão grande assim, como eu imaginava. O Campo Sete cedeu lugar para as casa do Programa Habitacional, e o espaço agora parecia tão minúsculo!
Depois que construíram as casas do Programa Habitacional em cima do Campo Sete, fui visitar minha irmã que morou numa das casinhas, em 2001. O quintal da casa era virado pro Buracão. Quando lá cheguei, achei tudo muito estranho: A erosão não era tão grande assim, como eu imaginava. O Campo Sete cedeu lugar para as casa do Programa Habitacional, e o espaço agora parecia tão minúsculo!
Nesse dia, fui visitar a
Conferência. Meus bons velhinhos já não estavam mais lá. A
Conferência continuava no mesmo lugar, mas os velhinhos cansaram da
vida e um dia qualquer bateram asas e voaram pela janela. Se foram com os pássaros-pretos, os anuns, os sabiás e as pombinhas!
O que fizeram
daquele enorme pátio? E porque os quartos se tornaram tão pequenos?
A mesa da cozinha, o fogão à lenha, as portas, paredes e janelas se
tornaram baixas, e a horta mudou de lugar. Tudo diferente, e aquele
mundo enorme que eu tinha na mente virou fumaça, dando lugar pra
realidade.
Mas a Conferência continua lá, cumprindo seu louvável papel: Hoje seus habitantes são outros, pessoas que outrora jovens, hoje se tornaram velhos. Antes saudáveis, hoje não podem mais trabalhar. Antes cheios de amigos, hoje isolados. Mas estão lá, com a Conferência misericordiosamente de braços abertos, a zelar pelos desamparados.
Quero lhe fazer um
convite: Visite também a Conferência, hoje todos a chamam pelo nome
verdadeiro: “Lar São José”.
Visite os velhinhos.
Isso fará bem ao teu coração e à tua alma.