terça-feira, 30 de junho de 2015

17º O Lar São José

Paredes gigantes, assim como janelas e portas altíssimas. E o pátio também.
Assim como todas construções e paisagens que visitamos na infância, que ficam gravadas na memória como espaços imensos até que os visitemos outra vez, quando nos tornamos adultos.

O Sol se descobriu por cima das árvores, seria talvez oito horas da manhã, num desses dias de Junho ou Julho, quando o astro-rei dá uma esticadinha mais ao Norte e preguiçosamente levanta mais tarde em todas manhãs.

O Joaquim, um anãozinho negro e mudo, subia do pasto carregando gravetos, um feixe de lenhas quase de sua própria altura, que seria usado durante o dia todo no fogão da Conferência. Na cozinha, o som do café sendo moído. Gravetos do dia anterior já crepitavam no fogão a lenha. Em breve a bebida forte exalaria o aroma, expulsando toda preguiça.

Os quartos, com as portas voltadas para o enorme pátio e as janelas do lado contrário contemplando a vastidão do Campo Sete, um por um se abriam. Ali descansavam do enfado da vida os velhinhos e doentes, pessoas enjeitadas pela família, ou que perdeu na vida seus entes queridos, gente esquecida pelos de seu próprio sangue. Alguns, são humanos que foram tratados como animais lá fora.
Não tendo mais ninguém neste mundo que se importasse com eles, contavam com a misericórdia da Conferência e de seus benfeitores, que diligentemente não deixavam faltar ali o pão de cada dia.

Francisca, moradora muito antiga, com uma vassoura de assa-peixe varria o pátio desde manhãzinha.

Ao fundo, uma pequena horta comunitária onde se plantava verduras e legumes, que ajudavam a complementar a dieta, era regada pelo João Marques. Mudo como uma pedra, ranzinza e muito independente, negava-se a morar com os outros asilados. Tinha seu próprio quartinho, separado da construção. Porém, de olhos vivos e sempre atento, cuidava com zelo das hortaliças arrancando as ervas daninhas que de teimosas sempre brotavam outra vez.

Embora houvesse um grupo de benfeitores e a Igreja também ajudava, havia entre eles uns três ou quatro pedintes, que saíam por toda cidade a pedir esmolas. De embornal tiracolo, traziam todos os dias um pouco mais de arroz, café, feijão. Um pedaço de pão e até banha de porco! Alguns conseguiam cinco ou seis cruzeiros no dia, com o qual comprava fumo ou guloseimas no boteco do Gêra, do Zé Buck ou do Joaquim Barba.

A Isabela levantava cedo e não penteava os cabelos. Surda de nascença, nunca aprendeu falar. Soltava grunhidos e resmungos, quando queria se comunicar. Inofensiva se não lhe provocassem, ficava furiosa com a molecada, que morria de medo dela. Não se podia passar perto da Isabela, quando estava ao lado de algum monte de pedras. A pontaria dela era certeira!

Fi-fi-rim, firim-fom, às vezes “Minha Gata” acordava feliz, e tomando sua gaitinha tocava músicas de cor. Um dia ele me contou que já nasceu doente das vistas, enxergando pouco, e cedo perdeu o olho esquerdo. E quando era mocinho, quase não enxergando nada, precisou correr das investidas de uma vaca no pasto, e se jogando debaixo da cerca furou-se nos espinhos, e naquele dia perdeu o restinho de luz no olho direito.
Perguntei-lhe se lembrava das coisas que tinha visto… segurou a gaita com a mão esquerda e com a direita coçou a testa… fechou os olhos brancos por longo tempo e deu um suspiro.
__Sim,menino, eu lembro de algumas coisas. Vi muito pouco desse mundo. E já estou velho e faz tempo que sou cego. Já não me lembro mais das cores, nem do desenho das casas, mas ainda vejo meu pai correndo ao meu encontro enquanto a vaca furiosa me perseguia. Sim, meu pai foi a última imagem que eu vi.
Triste história do Minha Gata! Mas sabia andar por toda cidade e voltava pra Conferência sem se perder. Com a bengalinha reconhecendo terreno, descia pra cidade todos os dias percorrendo botecos e vendas. Gostava das crianças e imitava muito bem os gatos! Era nossa alegria pedir a ele que miasse! E ele seguia feliz, ouvindo as risadas e imaginando o rosto risonho da criançada. Só imaginando, porque seus olhos nunca mais viram a luz do dia.

A Pachola era muda, miudinha e magricela. Maltratada pela vida, aquele caquinho de gente também saía cedo pra mendigar. Descalça, chegava nas casas sem bater palmas. Se o portão não tivesse trancado, entrava sem avisar. Um dia mamãe estava encerando o chão de casa, quando às suas costas percebeu um vulto passando. Virou-se e olhou aterrorizada: Era a Pachola, que entrando quintal adentro, nos observava de pé ao lado da porta. Foi um grande susto! Não estávamos acostumados com isso! Pois em São Paulo, quando alguém entrava nas casas, era bandido! Mas a Pachola coitada, esperava apenas a esmola…

Na Conferência, algumas pessoas não saíam dos quartos. Eram os paralíticos. Demasiado velhos ou doentes, passavam o dia a contemplar a janela. De suas camas viviam a vida contemplativa, ouvindo lá fora o cantar do pássaro-preto, do anum, do sabiá, o arrulhar das pombas no telhado e o barulho das galinhas e angolas do terreiro. A alegria dessa gente era receber visitas. Algumas tinham prazer de falar de suas vidas. Lembrar os filhos que se foram, os pais que perderam, os amores e aventuras, a profissão que exerceram, o que tiveram e o que perderam… Com as lembranças, traziam por uns momentos a vida pra dentro do quarto. Mas quando não aparecia ninguém, todos os dias se tornavam longos e iguais.

O Adolfo vivia de cabeça baixa, olhando pro chão. Preocupado com os pés, tinha um tique de amarrar trapos de pano colorido nos dedos. Gostava de andar descalço também. Perambulando nas ruas, voltava só pra comer e dormir.

Ali escutei muitas histórias. As velhinhas da Conferência me falavam do Saci-Pererê. Por causa delas, saí correndo um dia perseguindo um redemoinho de vento, por todo o Campo Sete! É que me disseram que se conseguisse jogar uma peneira em cima, eu capturava o Saci. Mas a peneira tinha que ter uma cruz desenhada no meio…

Eu queria acompanhar o Joaquim na coleta de gravetos, mas ele nunca permitiu. Com acenos e caretas, tentou explicar que havia ali perto um “Buracão” e era perigoso cair dentro dele, e se machucar ou morrer. Mas eu era teimoso. Uma vez entrei lá só pra pegar tabatinga, uma argila colorida pra fazer moldes de barro. No Buracão tinha tabatinga vermelha, amarela e branca.

Atrás da Conferência, o terreno segue em declive até a margem da represa.
Foi na Conferência que me contaram pela primeira vez sobre o “Nego d'agua”, um ser esquisito, misturado com gente e macaco, que vivia no fundo da represa e gostava de virar as canoas. E por causa disso, não me arriscava a descer até lá.

Também lá ouvi histórias da cidade velha. Diziam que pro lado do Barreirinho tinha muita onça naquele tempo. Um dos velhinhos, quando ainda era moço, veio na cidade pra namorar. Era noite escura quando voltou pra casa e escutou o miado da onça. A onça é traiçoeira e só ataca pelas costas. Então ele quebrou um galho verde e andando de costa, seguiu até o sítio, que ficava pras bandas do Barreirinho numa antiga estrada que levava até Passos, e foi arrastando o galho no chão, fazendo barulho, sem nunca se virar, com medo da onça o pegar desprevenido! Também ali me contaram que de vez em quando à noite descia uma tropa na rua do cemitério, e quando se aproximava do portão, sumia sem ninguém saber de onde veio e pra onde foi…

A Conferência me traz boas lembranças. Lembranças de uma infância feliz. Eu devia ter meus seis ou sete anos de idade. O Campo Sete, o pátio da Conferência, as paredes, tudo parecia estranhamente alto e grande pra mim. Essa imagem durou muitos anos na memória.
Depois que construíram as casas do Programa Habitacional em cima do Campo Sete, fui visitar minha irmã que morou numa das casinhas, em 2001. O quintal da casa era virado pro Buracão. Quando lá cheguei, achei tudo muito estranho: A erosão não era tão grande assim, como eu imaginava. O Campo Sete cedeu lugar para as casa do Programa Habitacional, e o espaço agora parecia tão minúsculo!
Nesse dia, fui visitar a Conferência. Meus bons velhinhos já não estavam mais lá. A Conferência continuava no mesmo lugar, mas os velhinhos cansaram da vida e um dia qualquer bateram asas e voaram pela janela. Se foram com os pássaros-pretos, os anuns, os sabiás e as pombinhas!

O que fizeram daquele enorme pátio? E porque os quartos se tornaram tão pequenos? A mesa da cozinha, o fogão à lenha, as portas, paredes e janelas se tornaram baixas, e a horta mudou de lugar. Tudo diferente, e aquele mundo enorme que eu tinha na mente virou fumaça, dando lugar pra realidade.

Mas a Conferência continua lá, cumprindo seu louvável papel: Hoje seus habitantes são outros, pessoas que outrora jovens, hoje se tornaram velhos. Antes saudáveis, hoje não podem mais trabalhar. Antes cheios de amigos, hoje isolados. Mas estão lá, com a Conferência misericordiosamente de braços abertos, a zelar pelos desamparados.
Quero lhe fazer um convite: Visite também a Conferência, hoje todos a chamam pelo nome verdadeiro: “Lar São José”.
Visite os velhinhos. Isso fará bem ao teu coração e à tua alma.