domingo, 16 de setembro de 2018

20º - Monareta

Que saudades de você!
Década de 1980, eu ganhava muitos gibis (revistas em quadrinhos) cada vez que eu visitava meus avós, em São Paulo…
Naquela época saiu uma moda, uma campanha impressa nas folhas dos gibis, onde vinha escrito assim: “Não esqueça a minha Caloi”
Foi o pesadelo de muitos pais, principalmente das famílias de baixa renda, numa época que bicicleta era um objeto caro e difícil de se comprar.
Também recortei meu bilhetinho; e na inocência de criança, entreguei-o ao meu pai, naquele longínquo ano de 1980. Estávamos na cozinha da casa de meus avós. A gente se preparava para a viagem que nos traria de volta a Guapé, depois de ter passado as férias escolares na casa de vovó.
Eu mal sabia que a viagem era o fruto de muitos meses de economia, de um pai que lutava todos os dias sob o Sol e sob a Chuva, para trazer o pão à mesa de casa, na humilde profissão de caminhoneiro.
Meu pai pegou o bilhete, no seu rosto havia um leve sinal de sorriso.
Não falou nada. Apenas pegou e guardou.
Também na minha inocência de criança, não percebi a tristeza oculta por trás daquele morno sorriso… Meu pai tinha (na época) pelo menos cinco bocas pequenas para tratar…
Então viemos embora, voltar a vida na rotina em Guapé, a cidade escolhida para morar.

A chegada dela não foi no Natal. Não foi no meu aniversário. E também não era Caloi.
O seu dia da chegada é confuso nas lembranças: Lembro de uma viagem de caminhão que fizemos; meu pai, minha mãe, eu e meus irmãos pequenos. Também lembro de ter pernoitado na casa de algum conhecido da família, em alguma cidade próxima de Guapé.
Não sei se ela veio para casa oculta na carga do caminhão, em cima da carroceria…
Ou se ela já me esperava em casa!
Mas associo a surpresa do presente, a essa imagem da viagem.
Não era nova. Papai conseguiu comprá-la de segunda ou terceira mão. Porém, ela foi toda reformada, a mando de meu pai.
Mas para atender ao pedido do meu bilhetinho, eu não sabia quantas marmitas foram economizadas, o quanto aquele sonho infantil custou ao meu pai, que num velho caminhão Chevrolet 70, ausente o dia todo de casa, fazia carretos de adubo ou café, pelos sítios de Guapé!
Lembro da felicidade pura de menino, ao ver seu presente!
E imediatamente esqueci da Caloi!
Eu possuía agora uma reluzente Monareta: Aquela bicicleta infantil da Monark que fez tanto sucesso nos anos 70 e 80…
Era vermelha. Meu pai mandou que trocassem os cabos de freio. Também colocou um novo selim. Para-lamas!
Havia uma buzina no guidom, daquelas de borracha (fom-fom). Uma nova catraca, coroa e corrente também novas! Um par de luvas no guidom.
E o cheiro dos pneus? Que delícia! Pneus novos de bicicleta.
Lembro de minha preocupação boba: Medo de que os “pelinhos” dos pneus novos logo se desgastassem, ao atrito com o chão…
Faltou alguma coisa: Eu queria a bomba de encher pneus. Também queria aquela proteção em volta da corrente, “pra barra das calças não enroscar na corrente”… Também queria adesivos: muitos adesivos para enfeitar meu precioso presente!
E Papai deixou que eu comprasse na bicicletaria do Expedito Monteiro todos os acessórios que desejei, para incrementar minha bicicleta. A conta que eu fiz, meu pai também pagou.

Em frente o Hospital da Cidade (naquele tempo funcionava o Colégio São Francisco) havia um terreno vago, um campo vazio onde a molecada do bairro jogava futebol (hoje ocupado por uma escola).
Ali, apoiado por minha irmã menor que segurava na garupa da bicicleta, eu dei minhas primeiras pedaladas! Foi ali que aprendi andar de bicicleta. A sensação era muito diferente dos “velocípedes” que eu já experimentei!

Nunca fui muito “sociável”… Nos tempos que morei na Rua Dr. Joaquim Coelho Filho - nº 409, havia mutirões que vinham de São Paulo, de São Carlos, etc. para construir a Igreja dos crentes.
Nessa época de construção, em casa era o dia todo aquele movimento, que embora transmitisse um clima de festa, de contentamento… provocava um movimento que não era a minha praia, que sempre preferi a tranquilidade, a calmaria, e também um vai-e-vem reduzido de pessoas à minha volta.
Então, ao chegar da Escola, pra me ver ausente de todo esse burburinho, eu saía de casa na bicicleta, pedalando pelas ruas da cidade. Eu ganhava talvez uns 10 cm. de altura, quando estava montado nela!
Aprendi a pedalar sem segurar o guidom! Então abria meus braços no Campo da Aviação. E eu era o piloto de um avião vermelho, que longe do solo voava tranquilo, com um potente motor tocado a pedal!
Uma liberdade indescritível. Uma felicidade descompromissada e espontânea, de criança que só quer ser feliz. Era uma felicidade diferente dessa felicidade adulta, construída, onde você sabe que “DEVE ser feliz, porque tudo está indo bem na vida, porque tem saúde e tem o que comer na mesa”
Uma simples e pura felicidade de criança, que embora não tivesse uma Caloi, vivia muito feliz com sua Monareta!

Tempos depois ela perdeu a importância… Os compromissos da vida, as responsabilidades no trabalho e as paixões, disputaram seu lugar dentro do meu coração; e ela perdeu seu reinado.
E certo dia desapareceu de nosso quintal, quando já morávamos na Rua Três de Fevereiro, onde antigamente funcionava a Padaria do Zé Osvaldo.
Passou alguns meses, eu até descobri quem foi que a levou embora… E seu esqueleto apareceu, todo enferrujado, nos fundos da “Rua do Buracão”, numa época que as águas da Represa recuaram por causa da seca. Deixei-a por lá, descansando em seu túmulo, no lugar escolhido por quem a levou.
Mas isto não vem ao caso. Está no passado e já foi perdoado.
O que eu não perdoo mesmo, foi minha falta de sensibilidade, de não tê-la conservado com carinho… Minha bicicleta que tanta felicidade e prazer me deu, quando eu ainda era criança.

Hoje, embora possuo um carro não muito velho, todavia não dispenso o uso da bicicleta!
Tenho uma Caloi City (também não muito nova) e com ela eu vou e volto TODOS OS DIAS ao trabalho. São aproximadamente 10kms. diários, aproximadamente 250kms. por mês. Faço o cálculo somando as quatro vezes que ando com ela diariamente: Vou para o trabalho, volto para almoçar. Depois retorno ao trabalho e volto à tarde pra casa. Faça frio ou calor, de Segunda a Sábado.
Só não vou de bicicleta se está chovendo muito. Todavia, a bicicleta já faz parte da minha vida. Por tantos quilômetros que já andei de bicicleta, acho que poderia abraçar o mundo, com meus pés em teus pedais!

Como dói essas lembranças...
E se hoje eu pudesse andar em você outra vez,
Com a felicidade pura de criança,
Quem sabe por um flash de tempo eu me sentiria
Com aquela liberdade de outrora,
A voar de braços abertos pelo Campo de Aviação,
Quando minha vida ainda estava na aurora…
Sentir o perfume de teus pneus novos,
Segurar teu guidom
E apertar sua buzina: Fon-fon!

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

19º - O Marceneiro que tocava Bombardino




__“Seu Tóin”, que é isso?
__ É a Morsa de Marceneiro.
__“Seu Tóin”, que é isso?
__ Esse é o Grampo de Marceneiro.
__“Seu Tóin”, que é isso?
__É a Plaina que eu mesmo fiz.
__“Seu Tóin”, que é isso?
__Esse é o Enxó. Cuidado, menino, que machuca!
__“Seu Tóin”, que é isso?
__Ah! Este é o Graminho. Ferramenta antiga, inventada no tempo de Jesus.
__“Seu Tóin”, que é isso?
__Um esquadro! Sem essa ferramenta os cantos ficam tortos!
__“Seu Tóin”, que é isso?
__ Ah, menino! Isto é um Formão!
__“Seu Tóin”, que é isso?
__Este é um Arco de Púa. Com certeza teus avós já tiveram um desses…
__“Seu Tóin”, que é isso?
__NossSinhora, Miníno! Ocê pergunta demais! Num qué lá vê se teu Pai tá precisano do’cê não? Vai me atrapaiá o serviço. Preciso entregar essa cadeira hoje! Virge Maria, que muleque custoso…

E assim era nossa conversa!

Mudei-me para a “Rua do Grupo de Lata” já na adolescência. Sem casa própria, sempre morando de aluguel, fomos parar naquela Rua no ano de 1984, quando alugamos a casa do Vito Miquita, o pai da Professora Averiana Castro.
E de frente à nossa casa morava o Sr. Antônio Sulica, um afinadíssimo baixista da Lira Maestro João Novato e também um excelente marceneiro…
Marceneiro daqueles tradicionais, dos antigos, do tempo em que se dizia: “Faça-você-mesmo”…
Pois é verdade! Suas ferramentas manuais eram tudo o que ele possuía.
Nada de equipamento elétrico! Energia da Cemig só entrava naquela casa para acender as lâmpadas. E assim mesmo era uma ou duas, apenas.

O encaixe da gaveta tinha de ficar perfeito. Na mesa, cantos arredondados; e tudo no esquadro.
E as rebarbas de madeira? Como Sr. Antônio as tirava do encosto da cadeira? Nada de lixadeiras! Era a Grosa velha e a Plaina cega que comiam!
As ferramentas de ferro e aço – de tão velhas e usadas que eram, pareciam lâminas envernizadas! Envernizadas por uma crosta negra, provocada por camadas e mais camadas de poeira e suor, impregnadas ali por décadas de uso, e que cobria toda a ferramenta como um verniz escuro.
Embora fossem rústicas, essas ferramentas quase caseiras foram criadas com as melhores madeiras. Seus cabos eram feitos de mogno e outras madeiras de lei.

A Morsa de Marceneiro, apesar de tão velha quanto “Seu Tóin”, prendia com eficiência as peças em seu único mordente, pressionando fortemente a madeira trabalhada contra a lateral da bancada.
Rangendo e resmungando, a velha Morsa obedecia a vontade de Tóin Sulica, quando ele, girando-lhe o fuso, apertava algum encaixe de madeira entalhado. E assim permanecia imóvel, até que lhe secasse a cola.

A Bancada de trabalho, toda em madeira maciça, velhíssima e com todas as ferramentas rústicas do Marceneiro espalhadas por cima dela, formavam um quadro impressionante de decrepitude.
Porém, um quadro de eficiência também! Porque dali saíram muitos criados-mudos, cadeiras, estantes, gavetas, baús e uma variedade enorme de pequenas peças, todas cuidadosamente trabalhadas, envernizadas e bem polidas.
Seu Antônio Sulica era um verdadeiro “Mestre Gepeto” (igual aquele do boneco Pinnóchio)… Porque nas suas mãos a madeira criava vida, criava forma e adquiria cor. E um cavaco rústico de madeira criava personalidade, nos pequenos móveis e objetos que ele fazia.
Este era o ganha-pão de Antônio Sulica – o Marceneiro que morava em frente a minha casa.

A casa de “Seu Tóin Sulica” era velha conhecida minha! Para mim, era uma casa misteriosa.
Desde criança, lembro-me de passar por aquela casa quando eu voltava do Grupo Primário.
Quando eu, a Vânia e a Vanusa Alcântara fomos visitar a mãezinha doente e acamada do Tóin Sulica, aquela casa já estava em estado deplorável, com as paredes trincadas e uma enorme brecha na parede da cozinha, que Seu Antônio tapou improvisando com pedaços de lona e tábuas…
Calma! Já sei o que vocês estão pensando! Minha idade, não é? Mas não sou tão velho assim! E não fui eu quem ajudou pregar as tábuas na Arca de Noé, podem ter certeza! É que a mãe de Tóin Sulica faleceu recentemente, fazem apenas 40 anos…
Mas a primeira visita que fizemos nesta casa foi no ano de 1976. E as meninas – Vânia e Vanusa, são filhas da Marilda e netas do Joaquim Monteiro; portanto, eram sobrinhas da velhinha enferma e primas do Seu Antônio.

Após a morte da mãe, Tóin Sulica ocupou cada canto e cada espaço da casa com cavacos de madeira, pernas de cadeiras e mesas torneadas, gavetas, caixotes, e um mundo de pequenos objetos em madeira que ele fazia. Mas nunca consertou a parede quebrada da cozinha…

Com muita dificuldade para andar, Seu Antônio encolhia os dedos dos pés ao caminhar e por causa disso quase não lhe cabiam os chinelos. É que ele sofria de “cravos” e “olho-de-peixe” nas solas dos pés, que lhe atormentavam dia e noite, fazendo com que o velho andasse sempre mancando.
Mesmo assim, ele nunca desanimava. Nos dias em que era convocado pela Lira Maestro João Novato, botava seu bombardino a tira-colo e mancando “subia o morro”, em direção ao grupo musical.
Nesses dias, lá da minha casa eu escutava o “Fon-fon-ri-fon” de seu instrumento… Era o Antônio Sulica que deixando de lado o martelo e o serrote, transformava sua sala de labor num Estúdio, aplicando-se em treinar a arte musical.
E então aquelas mãos rudes, de dedos marcados e unhas machucadas pela marreta, se transformavam num poderoso vetor da Escala Cromática, passeando pelas sete notas musicais nos cilindros de seu bombardino.

“Seu Tóin Sulica”… eu me divertia observando-o trabalhar em suas pequenas peças de madeira!
Certo dia, inspirado na marcenaria de Seu Antônio, eu mesmo fiz um porta-chaves, com pedaço de madeira e palitos de fósforos… Com suas ferramentas, é claro! Seu Tóin Sulica quem me ajudou a fazer.
Pena não ter comigo uma fotografia dessa primeira “obra de arte” que eu mesmo fiz! Sei que este objeto andou guardando as chaves da casa de minha mãe durante um bom tempo. Hoje não sei mais se existe…
Mas não parei por aí! E até hoje a minha diversão é mexer com madeira (é o meu “hobby”, como dizem os mais novos). E ainda faço pequenos trabalhos, faço miniaturas artesanais…
Ferramentas elétricas? Quase nenhuma! Seu Tóin Sulica me ensinou que ferramentas a gente faz em casa mesmo… Estilo: “Faça-você-mesmo”!

E assim, cada vez que eu entro naquela pequena oficina onde guardo minhas ferramentas manuais, lembro-me desse bom velhinho, que me deixou boas recordações e exemplos.
E a este Marceneiro que soube tão bem conjugar as duas profissões: da Música e da Madeira, deixo aqui minha homenagem:

Com lídima expressão e voz sentida
Hei de cumprir no Mundo a minha sorte
Alfredo Marceneiro toda a vida
Para cantar o fado até à morte.

Orgulho-me de ser em toda a parte
Português e fadista verdadeiro,
Eu que me chamo Alfredo, mas Duarte
Sou para toda a gente o Marceneiro.

Este apelido em mim, que pouco valho,
Da minha honestidade é forte indício.
Sou Marceneiro, sim, porque trabalho,
Marceneiro no fado e no ofício.

Ao fado consagrei a vida inteira
E há muito, por direito de conquista.
Sou fadista, mas à minha maneira,
À maneira melhor de ser fadista.

E se alguém duvidar crave uma espada
Sem dó numa guitarra para crer,
A alma da guitarra mutilada
Dentro da minha alma há de gemer

Música de Alfredo Marceneiro – fadista português.