domingo, 26 de julho de 2020

21º - Padre João

"Estou pensando em Deus
Estou pensando no amor
Estou pensando em Deus
Estou pensando no amor
Os homens fogem do amor
E depois que se esvaziam
No vazio se angustiam
E duvidam de Você
Você chega perto deles
Mesmo assim ninguém tem fé."

Padre João.
Sou suspeito pra falar desse senhor, pois era alguém que jamais tive algum contato pessoal, visto que, pertencendo a outra religião, não frequentei a Igreja Matriz.
Um sujeito que sempre vi ao longe, fosse nas procissões que percorriam as ruas, ou nos seus esporádicos passeios pelas ruas da cidade – quando alguém, conduzindo o veículo, levava-o para alguma missão ou visita aos fiéis.
Nunca entabulei uma conversa com ele, nem jamais pedi sua bênção.
Nunca lhe dirigi qualquer palavra, ou parei para ouvir seu sermão. Afinal, nunca me vi na oportunidade de me aproximar dele.
Mas conheci-o bem cedo… 
Porque vivendo em Guapé, vivia-se, de qualquer forma, com a presença de Padre João em nossas casas!
Houve um tempo que podia-se dizer que metade da cidade fora batizada pelo Padre João. E a outra metade, por já serem mais velhos quando foi ordenado, levaram seus filhos a ele.
Nunca atravessou o umbral de minha casa, mas acordava-nos todos os dias de manhã, com as músicas religiosas que tocavam em seus discos de vinil!
Às vezes eu nem conhecia certo cidadão, ou talvez nem soubesse que andava doente… Mas ele nos avisava toda vez que alguém morria!
Não sabia quem era o noivo, nem mesmo o nome de seus pais. Mas sempre acabava informado de tudo: Quem eram os pais, os sogros, padrinhos e até o dia do casamento, porque ele nos avisava também através dos alto-falantes da Igreja Matriz.
Nunca fui à missa, mas ficava sabendo do seu horário e até mesmo de algumas broncas que levavam certas pessoas, quando se atrasavam para a cerimônia; porque sua voz ecoava aos quatro ventos, nos avisando...
Era um dia diferente: um dia apreensivo e até mesmo esperado com ansiedade, a sua visita nas Escolas, no Grupo Primário… Foi uma pena, mas se ela aconteceu – e eu creio que sim – eu não o vi neste dia também.
Notícias diversas eram publicadas naquele “jornal falado” que se fazia ouvir aos quatro ventos nos alto-falantes da torre de quatro lados:
Desde um aviso qualquer, sem importância nenhuma (mas que certo cidadão insistia que se anunciasse nos alto-falantes), até mesmo alguma notícia de maior importância, como algum acidente nas estradas, ou algum evento importante à cidade, para os próximos dias.
Algumas vezes o padre exercitava sua oratória e fazia as pregações a partir do microfone, para toda a cidade ouvir.
Conselhos matrimoniais, conselhos aos jovens, admoestações aos desencaminhados, reprimenda nos casais de namorados que andavam pela Praça durante a noite, a chamada para a missa, o serviço contratado, o negócio combinado, etc… Tudo era falado, tudo era anunciado.
A missa de corpo presente era anunciada sob a execução tristíssima de alguma música religiosa. E os sinos repicavam na derradeira vez que o cidadão atravessava as portas da Matriz, quando era então conduzido pelos parentes e amigos até sua derradeira morada, no final da Rua que descia da Praça até o portão do Cemitério.
Lembrança triste de um dia, em 1983, quando uma menina, ainda bem jovem foi levada ao cemitério. Sofrera de câncer e veio a óbito. Ela morava ali mesmo, na Rua que descia para o Cemitério. E conheci-a de vista.
No momento que seu corpo fazia a curva pra descer a rua, já no finalzinho da tarde de um dia nublado, a Igreja tocava uma triste música… Eu, que passava por lá naquele momento de bicicleta, esperei com respeito o cortejo passar. Tão nova! Mas foi seu destino… 
O Zé da Hora era sempre convocado, como se pudesse, de qualquer forma, mesmo sendo o “homem do sino”, alguém capaz de perder a Hora… 
Como toda pessoa proeminente na sociedade, Padre João também teve seus admiradores e críticos.
E tinha também aqueles que – sem temor – imitavam sua voz arrastada e de tom afetado, com sotaque alemão… Esses também recebiam uma repreensão pública, a partir dos alto-falantes da Igreja Matriz!
E inevitavelmente, com meio século de sacerdócio, foram muitas as “histórias do Padre João”.
Verídicas ou fictícias, essas sempre populavam a imaginação e a consciência das pessoas.
Eu, pelo distanciamento com a sociedade religiosa e católica da cidade, com toda certeza não conheci dez por cento delas!
Porém, muita gente – principalmente o povo mais velho de Guapé, e também aqueles que já eram adolescentes em 1984, 1985 – com certeza guardam memórias muito melhores e bem maiores do que essas que eu possuo.
Mas entendo que o sacerdote foi, inegavelmente, “a cara da cidade”.
Guapé se amalgamava em torno de Padre João.
Brigas de família, brigas de vizinhos, brigas entre credores e devedores, rixas e todo tipo de diferenças, podiam ser resolvidas com os conselhos do Padre, no confessionário.
Foi rígido, contumaz, mas também foi admirado pelos que receberam seu auxílio nas horas de necessidade.
Houve um tempo, na década de 80, que ordens superiores levaram-no da cidade, pois sua saúde inspirava cuidados e ele já não podia administrar bem o sacerdócio.
Mas não teve jeito: Mesmo fragilizado pela idade e pela doença, Padre João foi outra vez trazido à cidade. A vida do padre estava ali, ligada ao povo que durante tantos anos ele doutrinou.
Foi ali em Guapé que ele viveu a maior parte de toda sua vida. E era ali naquela cidade que deveria abandoná-la, quando chegasse a hora.
Então, certo dia, o padre não falou mais nos alto-falantes… 
E foi pela voz de outros que se fez anunciar sua partida.
Uma triste e sentida partida para muitos, que fez a cidade parar momentaneamente.
Padre João ganhou um busto, uma praça e um jazigo ao lado da Igreja que tanto amou.
Não o conheci pessoalmente, é verdade.
Mas alguma coisa ficou marcada, com certeza. Porque hoje, ao longe, escutei uma bela canção do Padre Zezinho… E lembranças me vieram à memória.
E, automaticamente lembrei-me da infância, das ruas poeirentas de Guapé, dos campinhos de futebol, das quadras vazias, do enorme campo de aviação, da velha rodoviária, da Praça do Cruzeiro, da Praça da Matriz, do Bosque, da Figueira, do Buracão e da Rua Três de Fevereiro; do velho ônibus da Viação Martins, da homenagem ao Homem do Campo cantada na voz de Dom & Ravel, do enfeitado Corpus Christi com palha de arroz colorida, das músicas religiosas tocadas a partir da torre da Igreja (inclusive essa, do Padre Zezinho), do velho coreto, da velha fonte, das árvores que enfeitavam a Avenida Brasil…
E, lógico, da inconfundível voz do Padre João… 

"Tudo seria bem melhor
Se o Natal não fosse um dia
E se as mães fossem Maria
E se os pais fossem José
E se a gente parecesse
Com Jesus de Nazaré
Estou pensando em Deus
Estou pensando no amor
Estou pensando em Deus
Estou pensando no amor…"

Nenhum comentário:

Postar um comentário