__“Seu Tóin”,
que é isso?
__ É a Morsa de
Marceneiro.
__“Seu Tóin”,
que é isso?
__ Esse é o Grampo
de Marceneiro.
__“Seu Tóin”,
que é isso?
__É a Plaina que eu
mesmo fiz.
__“Seu Tóin”,
que é isso?
__Esse é o Enxó.
Cuidado, menino, que machuca!
__“Seu Tóin”,
que é isso?
__Ah! Este é o
Graminho. Ferramenta antiga, inventada no tempo de Jesus.
__“Seu Tóin”,
que é isso?
__Um esquadro! Sem
essa ferramenta os cantos ficam tortos!
__“Seu Tóin”,
que é isso?
__ Ah, menino! Isto
é um Formão!
__“Seu Tóin”,
que é isso?
__Este é um Arco de
Púa. Com certeza teus avós já tiveram um desses…
__“Seu Tóin”,
que é isso?
__NossSinhora,
Miníno! Ocê pergunta demais! Num qué lá vê se teu Pai tá
precisano do’cê não? Vai me atrapaiá o serviço. Preciso
entregar essa cadeira hoje! Virge Maria, que muleque custoso…
E assim era nossa
conversa!
Mudei-me para a “Rua
do Grupo de Lata” já na adolescência. Sem casa própria, sempre
morando de aluguel, fomos parar naquela Rua no
ano de 1984,
quando alugamos a casa do Vito
Miquita, o pai da
Professora Averiana Castro.
E
de frente à
nossa casa
morava o Sr. Antônio Sulica, um afinadíssimo baixista da Lira
Maestro João Novato e também um excelente marceneiro…
Marceneiro
daqueles tradicionais, dos antigos, do tempo em que se dizia:
“Faça-você-mesmo”…
Pois
é verdade! Suas ferramentas manuais eram tudo o que ele possuía.
Nada
de equipamento elétrico! Energia da Cemig só entrava naquela casa
para acender as lâmpadas. E assim mesmo era uma ou duas, apenas.
O
encaixe da gaveta tinha de ficar perfeito. Na mesa, cantos
arredondados; e
tudo
no esquadro.
E
as rebarbas de madeira? Como Sr.
Antônio as tirava do
encosto da cadeira? Nada de lixadeiras! Era a Grosa velha e a Plaina
cega que comiam!
As
ferramentas de ferro e aço – de tão velhas e usadas que eram,
pareciam lâminas envernizadas! Envernizadas por
uma crosta negra,
provocada
por camadas e mais camadas de poeira e suor, impregnadas ali por
décadas de uso, e que
cobria toda a ferramenta como um verniz escuro.
Embora
fossem rústicas, essas ferramentas quase caseiras foram criadas com
as melhores madeiras. Seus
cabos eram feitos de mogno e outras madeiras de lei.
A
Morsa de Marceneiro, apesar de tão velha quanto “Seu Tóin”,
prendia com eficiência
as peças em seu único
mordente, pressionando fortemente a madeira trabalhada contra a
lateral da bancada.
Rangendo
e resmungando, a velha Morsa obedecia a vontade de Tóin Sulica,
quando ele, girando-lhe o fuso, apertava algum encaixe de madeira
entalhado. E assim permanecia imóvel,
até que lhe secasse a
cola.
A
Bancada de trabalho, toda em madeira maciça, velhíssima e com todas
as ferramentas rústicas do Marceneiro espalhadas por cima dela,
formavam um quadro impressionante de decrepitude.
Porém,
um quadro de eficiência também! Porque dali saíram muitos
criados-mudos, cadeiras, estantes, gavetas, baús e uma variedade
enorme de pequenas peças, todas cuidadosamente trabalhadas,
envernizadas e bem polidas.
Seu
Antônio
Sulica era um verdadeiro
“Mestre Gepeto” (igual
aquele do boneco
Pinnóchio)…
Porque nas suas mãos a madeira criava vida, criava
forma e adquiria
cor. E um cavaco rústico
de madeira criava
personalidade, nos
pequenos móveis e objetos que ele fazia.
Este
era o ganha-pão de Antônio Sulica – o Marceneiro que morava em
frente a minha casa.
A
casa de “Seu Tóin Sulica” era velha conhecida minha! Para mim,
era uma casa misteriosa.
Desde
criança, lembro-me de passar por aquela casa quando eu voltava do
Grupo Primário.
Quando
eu, a Vânia e a Vanusa Alcântara fomos
visitar a mãezinha
doente e acamada do Tóin Sulica, aquela casa já estava em estado
deplorável, com as
paredes trincadas e uma
enorme brecha na parede da cozinha, que Seu Antônio tapou
improvisando com pedaços de lona e tábuas…
Calma!
Já sei o que vocês estão pensando! Minha idade, não é? Mas não
sou tão velho assim! E
não fui
eu quem ajudou pregar as
tábuas na Arca de Noé, podem ter certeza! É
que a mãe de Tóin
Sulica faleceu recentemente, fazem apenas 40 anos…
Mas
a primeira visita que fizemos nesta
casa foi no ano de 1976. E as meninas – Vânia
e Vanusa, são filhas da
Marilda e netas do Joaquim Monteiro; portanto,
eram sobrinhas da velhinha enferma
e primas
do Seu Antônio.
Após
a morte da mãe, Tóin Sulica ocupou cada canto
e cada espaço da casa
com cavacos de madeira, pernas de cadeiras e mesas torneadas,
gavetas, caixotes, e um mundo de pequenos objetos
em madeira que ele fazia. Mas nunca consertou a parede quebrada da
cozinha…
Com
muita dificuldade para andar, Seu Antônio encolhia os dedos dos pés
ao caminhar e
por causa disso quase não lhe cabiam os chinelos. É que ele sofria
de “cravos” e “olho-de-peixe” nas solas dos pés, que lhe
atormentavam dia e noite, fazendo com que o velho andasse sempre
mancando.
Mesmo
assim, ele nunca desanimava. Nos dias em que era convocado pela Lira
Maestro João Novato, botava seu bombardino a tira-colo e mancando
“subia o morro”, em direção ao grupo musical.
Nesses
dias, lá da minha casa eu escutava o “Fon-fon-ri-fon” de seu
instrumento… Era o Antônio Sulica que deixando de lado o martelo e
o serrote,
transformava sua sala de labor num Estúdio, aplicando-se em treinar
a arte musical.
E
então aquelas mãos rudes, de dedos marcados e unhas machucadas pela
marreta, se transformavam num poderoso vetor da Escala Cromática,
passeando pelas sete notas musicais nos cilindros de seu bombardino.
“Seu
Tóin Sulica”… eu me divertia observando-o trabalhar em suas
pequenas peças de madeira!
Certo
dia, inspirado na marcenaria de Seu Antônio, eu mesmo fiz um
porta-chaves, com pedaço de madeira e palitos de fósforos… Com
suas ferramentas, é claro! Seu Tóin Sulica quem me ajudou a fazer.
Pena
não ter comigo uma fotografia dessa primeira “obra de arte” que
eu mesmo fiz! Sei que este objeto andou guardando as chaves da casa
de minha mãe durante um bom tempo. Hoje não sei mais se existe…
Mas
não parei por aí! E até hoje a minha diversão é mexer com
madeira (é o
meu “hobby”, como dizem os mais novos). E ainda faço pequenos
trabalhos, faço miniaturas artesanais…
Ferramentas
elétricas? Quase nenhuma! Seu Tóin Sulica me ensinou que
ferramentas a gente faz em casa mesmo… Estilo: “Faça-você-mesmo”!
E
assim, cada vez que eu entro naquela pequena oficina onde guardo
minhas ferramentas manuais, lembro-me desse bom velhinho, que me
deixou boas recordações e exemplos.
E
a este Marceneiro que soube tão bem conjugar as duas profissões: da
Música e da Madeira, deixo aqui minha homenagem:
Com
lídima expressão e voz sentida
Hei de cumprir no
Mundo a minha sorte
Alfredo Marceneiro
toda a vida
Para cantar o fado
até à morte.
Orgulho-me de ser em
toda a parte
Português e fadista
verdadeiro,
Eu que me chamo
Alfredo, mas Duarte
Sou para toda a
gente o Marceneiro.
Este apelido em mim,
que pouco valho,
Da minha honestidade
é forte indício.
Sou Marceneiro, sim,
porque trabalho,
Marceneiro no fado e
no ofício.
Ao fado consagrei a
vida inteira
E há muito, por
direito de conquista.
Sou fadista, mas à
minha maneira,
À maneira melhor de
ser fadista.
E se alguém duvidar
crave uma espada
Sem dó numa
guitarra para crer,
A alma da guitarra
mutilada
Dentro da minha alma
há de gemer
Música
de Alfredo Marceneiro – fadista português.
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