terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

19º - O Marceneiro que tocava Bombardino




__“Seu Tóin”, que é isso?
__ É a Morsa de Marceneiro.
__“Seu Tóin”, que é isso?
__ Esse é o Grampo de Marceneiro.
__“Seu Tóin”, que é isso?
__É a Plaina que eu mesmo fiz.
__“Seu Tóin”, que é isso?
__Esse é o Enxó. Cuidado, menino, que machuca!
__“Seu Tóin”, que é isso?
__Ah! Este é o Graminho. Ferramenta antiga, inventada no tempo de Jesus.
__“Seu Tóin”, que é isso?
__Um esquadro! Sem essa ferramenta os cantos ficam tortos!
__“Seu Tóin”, que é isso?
__ Ah, menino! Isto é um Formão!
__“Seu Tóin”, que é isso?
__Este é um Arco de Púa. Com certeza teus avós já tiveram um desses…
__“Seu Tóin”, que é isso?
__NossSinhora, Miníno! Ocê pergunta demais! Num qué lá vê se teu Pai tá precisano do’cê não? Vai me atrapaiá o serviço. Preciso entregar essa cadeira hoje! Virge Maria, que muleque custoso…

E assim era nossa conversa!

Mudei-me para a “Rua do Grupo de Lata” já na adolescência. Sem casa própria, sempre morando de aluguel, fomos parar naquela Rua no ano de 1984, quando alugamos a casa do Vito Miquita, o pai da Professora Averiana Castro.
E de frente à nossa casa morava o Sr. Antônio Sulica, um afinadíssimo baixista da Lira Maestro João Novato e também um excelente marceneiro…
Marceneiro daqueles tradicionais, dos antigos, do tempo em que se dizia: “Faça-você-mesmo”…
Pois é verdade! Suas ferramentas manuais eram tudo o que ele possuía.
Nada de equipamento elétrico! Energia da Cemig só entrava naquela casa para acender as lâmpadas. E assim mesmo era uma ou duas, apenas.

O encaixe da gaveta tinha de ficar perfeito. Na mesa, cantos arredondados; e tudo no esquadro.
E as rebarbas de madeira? Como Sr. Antônio as tirava do encosto da cadeira? Nada de lixadeiras! Era a Grosa velha e a Plaina cega que comiam!
As ferramentas de ferro e aço – de tão velhas e usadas que eram, pareciam lâminas envernizadas! Envernizadas por uma crosta negra, provocada por camadas e mais camadas de poeira e suor, impregnadas ali por décadas de uso, e que cobria toda a ferramenta como um verniz escuro.
Embora fossem rústicas, essas ferramentas quase caseiras foram criadas com as melhores madeiras. Seus cabos eram feitos de mogno e outras madeiras de lei.

A Morsa de Marceneiro, apesar de tão velha quanto “Seu Tóin”, prendia com eficiência as peças em seu único mordente, pressionando fortemente a madeira trabalhada contra a lateral da bancada.
Rangendo e resmungando, a velha Morsa obedecia a vontade de Tóin Sulica, quando ele, girando-lhe o fuso, apertava algum encaixe de madeira entalhado. E assim permanecia imóvel, até que lhe secasse a cola.

A Bancada de trabalho, toda em madeira maciça, velhíssima e com todas as ferramentas rústicas do Marceneiro espalhadas por cima dela, formavam um quadro impressionante de decrepitude.
Porém, um quadro de eficiência também! Porque dali saíram muitos criados-mudos, cadeiras, estantes, gavetas, baús e uma variedade enorme de pequenas peças, todas cuidadosamente trabalhadas, envernizadas e bem polidas.
Seu Antônio Sulica era um verdadeiro “Mestre Gepeto” (igual aquele do boneco Pinnóchio)… Porque nas suas mãos a madeira criava vida, criava forma e adquiria cor. E um cavaco rústico de madeira criava personalidade, nos pequenos móveis e objetos que ele fazia.
Este era o ganha-pão de Antônio Sulica – o Marceneiro que morava em frente a minha casa.

A casa de “Seu Tóin Sulica” era velha conhecida minha! Para mim, era uma casa misteriosa.
Desde criança, lembro-me de passar por aquela casa quando eu voltava do Grupo Primário.
Quando eu, a Vânia e a Vanusa Alcântara fomos visitar a mãezinha doente e acamada do Tóin Sulica, aquela casa já estava em estado deplorável, com as paredes trincadas e uma enorme brecha na parede da cozinha, que Seu Antônio tapou improvisando com pedaços de lona e tábuas…
Calma! Já sei o que vocês estão pensando! Minha idade, não é? Mas não sou tão velho assim! E não fui eu quem ajudou pregar as tábuas na Arca de Noé, podem ter certeza! É que a mãe de Tóin Sulica faleceu recentemente, fazem apenas 40 anos…
Mas a primeira visita que fizemos nesta casa foi no ano de 1976. E as meninas – Vânia e Vanusa, são filhas da Marilda e netas do Joaquim Monteiro; portanto, eram sobrinhas da velhinha enferma e primas do Seu Antônio.

Após a morte da mãe, Tóin Sulica ocupou cada canto e cada espaço da casa com cavacos de madeira, pernas de cadeiras e mesas torneadas, gavetas, caixotes, e um mundo de pequenos objetos em madeira que ele fazia. Mas nunca consertou a parede quebrada da cozinha…

Com muita dificuldade para andar, Seu Antônio encolhia os dedos dos pés ao caminhar e por causa disso quase não lhe cabiam os chinelos. É que ele sofria de “cravos” e “olho-de-peixe” nas solas dos pés, que lhe atormentavam dia e noite, fazendo com que o velho andasse sempre mancando.
Mesmo assim, ele nunca desanimava. Nos dias em que era convocado pela Lira Maestro João Novato, botava seu bombardino a tira-colo e mancando “subia o morro”, em direção ao grupo musical.
Nesses dias, lá da minha casa eu escutava o “Fon-fon-ri-fon” de seu instrumento… Era o Antônio Sulica que deixando de lado o martelo e o serrote, transformava sua sala de labor num Estúdio, aplicando-se em treinar a arte musical.
E então aquelas mãos rudes, de dedos marcados e unhas machucadas pela marreta, se transformavam num poderoso vetor da Escala Cromática, passeando pelas sete notas musicais nos cilindros de seu bombardino.

“Seu Tóin Sulica”… eu me divertia observando-o trabalhar em suas pequenas peças de madeira!
Certo dia, inspirado na marcenaria de Seu Antônio, eu mesmo fiz um porta-chaves, com pedaço de madeira e palitos de fósforos… Com suas ferramentas, é claro! Seu Tóin Sulica quem me ajudou a fazer.
Pena não ter comigo uma fotografia dessa primeira “obra de arte” que eu mesmo fiz! Sei que este objeto andou guardando as chaves da casa de minha mãe durante um bom tempo. Hoje não sei mais se existe…
Mas não parei por aí! E até hoje a minha diversão é mexer com madeira (é o meu “hobby”, como dizem os mais novos). E ainda faço pequenos trabalhos, faço miniaturas artesanais…
Ferramentas elétricas? Quase nenhuma! Seu Tóin Sulica me ensinou que ferramentas a gente faz em casa mesmo… Estilo: “Faça-você-mesmo”!

E assim, cada vez que eu entro naquela pequena oficina onde guardo minhas ferramentas manuais, lembro-me desse bom velhinho, que me deixou boas recordações e exemplos.
E a este Marceneiro que soube tão bem conjugar as duas profissões: da Música e da Madeira, deixo aqui minha homenagem:

Com lídima expressão e voz sentida
Hei de cumprir no Mundo a minha sorte
Alfredo Marceneiro toda a vida
Para cantar o fado até à morte.

Orgulho-me de ser em toda a parte
Português e fadista verdadeiro,
Eu que me chamo Alfredo, mas Duarte
Sou para toda a gente o Marceneiro.

Este apelido em mim, que pouco valho,
Da minha honestidade é forte indício.
Sou Marceneiro, sim, porque trabalho,
Marceneiro no fado e no ofício.

Ao fado consagrei a vida inteira
E há muito, por direito de conquista.
Sou fadista, mas à minha maneira,
À maneira melhor de ser fadista.

E se alguém duvidar crave uma espada
Sem dó numa guitarra para crer,
A alma da guitarra mutilada
Dentro da minha alma há de gemer

Música de Alfredo Marceneiro – fadista português.



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